“Sofri na pele e na alma a discriminação social, e principalmente o racismo…” – Laércio Dativo – Rio de Janeiro/RJ

Roberta Manreza Publicado em 17/03/2017, às 00h00 - Atualizado às 07h41

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17 de março de 2017


“Eu, Laércio Dativo, nasci em 08/12/1973, ou seja, em plena década de 70, uma época de ebulição da busca pela conquista de direitos sociais e liberdades, vez que todos nós vivíamos numa época de poucos ou nenhum direito, e mais deveres a todos nós. Desta época até o ano 1985, como criança, sofri na pele e na alma a discriminação social, e principalmente o racismo, de forma bem frontal e direta. Não foi fácil para mim, enquanto criança, tolerar esta situação, tolerar as humilhações e, muitas vezes, calado fiquei, porque se corresse o risco de dizer algo contra, talvez pudesse ser alvo de violência física, ou seja, apanhar das pessoas.

Como bem disse, nesta época, eu e meus irmãos éramos conhecidos como os “filhos da costureira”, e por isso sempre sofríamos a discriminação social e racial, principalmente, porque no bairro em que eu morava também residiam muitos comerciantes, e as famílias, em especial, esposas e filhas destes, faziam vestidos com minha mãe, que era a costureira mais próxima.

Em qualquer lugar, seja na padaria, no mercado, mercearia, quando eu e meus irmãos estávamos juntos ou separados, nos parecia que não tínhamos nome próprio, estas clientes da minha mãe tinham o hábito de nos chamar em alto e bom tom: “olha o filho(a) da costureira ali”, “vc é o filho da costureira, né?”, “filha da costureira, por favor avise a sua mãe que passarei lá para pegar meu vestido e pagar”. Bem, era impossível não nos incomodarmos com esta situação, mas para que nossa mãe pudesse ganhar dinheiro, e nos sustentar, nós permanecíamos calados e respondíamos tão somente, um “sim senhora” ou “não senhora”, nada além disso.

Meu pai era marítimo e, muitas vezes, estava ausente. Minha mãe tinha a incumbência de nos criar, direcionar ao caminho do bom viver e de respeito a todos, e meu pai, quando chegava de viagem, nos cobrava o comportamento dentro das “regras da casa”.

Para mim, criança, meus irmãos adolescentes, muitas vezes, compreender que deveríamos viver diariamente em regime de tolerância não era tão fácil porque, de vez em quando, nos deparávamos com pessoas que eram racistas, e por incrível que pareça, estas pessoas, em especial, mulheres e filhas destes, tinham em sua família parentes negros, mas faziam questão de dizer que eram “brancas”, e deixavam claro este fato destratando a mim e aos meus irmãos com palavras que doíam, machucavam na nossa alma.

É bom lembrar que também os filhos (as) destas famílias, crianças e adolescentes, que brincavam comigo na rua, em dados momentos, como se dizia “brigas de criança”, deixavam claro as orientações discriminatórias que recebiam em casa. Algumas vezes, eu não suportava e retrucava, discordava, mas do que adiantava? Percebia que aquela orientação estava impregnada na alma daquelas crianças. Hoje, tenho discernimento porque sou adulto, mas como criança, não entendia isso direito, somente sentia repulsa e muita dor na alma.

Uma situação que me incomodou muito, e que jamais esqueci, foi quando era criança, e tinha amizades com os filhos de uma senhora que tinha uma loja de roupas finas.  Os filhos desta sempre me trataram de igual para igual, apesar de serem “brancos”, eram amigos que me respeitavam. Certa vez, estes amigos me convidaram para que eu os acompanhasse na festinha da casa de uma menina, que a mãe desta fazia costuras com minha mãe. Eu, na época, disse a eles que talvez não fosse uma boa ideia, uma vez que já tinha ouvido que a mãe desta era racista, e a filha também era “enjoadinha” (palavras de criança, nesta época, eu tinha uns 08 anos de idade).  Meus amiguinhos insistiram, e eu fui. Ao chegar no portão acompanhado de meus amigos, eles entraram, mas quando eu fui entrar, fecharam o portão em minha cara, ouvi os “cochichos”, e ouvi que separassem um pedaço de bolo e entregasse para mim para que eu levasse para minha mãe.

Ao chegar em casa com o pedaço de bolo nas mãos, minha mãe me perguntou como tinha sido a festa, e eu contei a ela o que tinha acontecido. Minha mãe baixou a cabeça e disse: “meu filho, um dia isso tudo vai passar, e você vai vencer na vida, não se preocupe, tá bom? Estude, lute e cresça, jamais fique triste, faça do sentimento de tristeza seu impulso para vencer na vida, o que importa é que te amo, e sei quem você é e os ensinamentos que te passei”.  

Na foto, Laércio e sua mãe.

Eu absorvi as orientações e palavras de minha mãe, e segui em frente, mas ressalto, não foi fácil, nada fácil. A discriminação racial  e o preconceito doem muito. Enquanto adultos, conseguimos discernir, ou até mesmo nos fazermos de surdos, mas as crianças sofrem muito, porque somente absorvem, e não sabem trabalhar dentro de si o que ouvem ou o tratamento que recebem. 

Hoje, sou advogado, e entre os colegas de profissão, o tratamento discriminatório também é claro.  Alguns reagem na hora, vão à imprensa… Mas eu quero deixar claro o seguinte:  o ser humano é único, tonalidades de pele não nos diferencia, adoecemos e temos necessidades fisiológicas iguais a todos. Devemos nos pautar por nossas condutas, sermos o exemplo. Nós somos o resultado do que nos foi passado por nossa família, e nós temos que ser o modelo para os que convivem conosco, o mundo precisa de bons exemplos, de sentido igualitário, e não de tratamentos desiguais. Disseminar o amor ao próximo é o que deve importar ao ser humano, e com certeza, este ato é a chave mestra para tornar nosso mundo melhor.

Espero que este depoimento possa ajudar a todos, abraços a todos os jornalistas e equipe do programa. Até a próxima!!! Laércio”. 

PAPO DE MÃE: Laércio, a equipe Papo de Mãe agradece imensamente o seu relato. Que sua história possa de alguma forma ajudar a acabarmos com o preconceito racial. Segue o Papo de Mãe sobre Preconceito, para você e para todos os nossos leitores e telespectadores! Um grande abraço!




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