Cedo demais para morrer, difícil demais para viver

Temos observado nos últimos anos o crescimento bastante assustador de comportamento suicida e parassuicida entre os jovens.

Roberta Manreza Publicado em 23/04/2018, às 00h00 - Atualizado às 22h48

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23 de abril de 2018


Neste fim de semana, mais um adolescente se matou em São Paulo. O assunto tem gerado muita preocupação entre os pais. A pedido do Papo de Mãe, o psiquiatra da infância e adolescência Miguel Boarati escreveu este texto.

 Por Miguel Angelo Boarati , médico psiquiatra da infância e adolescência

Estátuas e cofres e paredes pintadas

Ninguém sabe o que aconteceu

Ela se jogou da janela do quinto andar

Nada é fácil de entender…

Legião Urbana (“Pais e Filhos”)

Temos observado nos últimos anos o crescimento bastante assustador de comportamento suicida e parassuicida entre os jovens. Profissionais da área de saúde mental têm se deparado com esse aumento em sua prática clínica que vai da ideação suicida, passando pelo planejamento, tentativas e efetivação.

Esse é um tema que não ganha expressão na mídia, pois o suicido apresenta um caráter “contagioso” podendo influenciar de maneira negativa outras pessoas que estão em um momento vulnerável. Entretanto, estudos comprovam um aumento efetivo nesses em todas as faixas etárias, em especial períodos de maior vulnerabilidade psicossocial como a adolescência e a terceira idade.

Pensar em um aumento do suicídio na terceira idade é algo assustador, mas de certa forma questões relacionadas à perda da saúde física, do companheiro, dificuldades financeiras poderiam favorecer o entendimento de suas razões. Mas o que nos leva a pensar é quais seriam as razões para o aumento dessas taxas entre os mais jovens, em especial os adolescentes. Esse é um período de expectativa de vida, planos para o futuro e de conquistas. O que está levando nossos jovens a preferirem a morte do que a vida? E porque o comportamento suicida está efetivamente aumentando nos dias atuais? Seria um aumento real ou a melhor notificação dos casos? O nível de estresse e o aumento no nível de cobranças poderiam estar relacionados a isso?

Para tentar responder todas essas perguntas é importante que conversemos sobre a adolescência e quais são as particularidades dessa fase da vida e como o mundo moderno potencializou riscos relacionados a esse momento.

Adolescência, uma fase de mudanças intensas e incertezas

A adolescência, que se estende do final da infância (entre os 10-12 anos) até o início da vida adulta (20-25 anos), compreende um período de mudanças intensas e irreversíveis. O corpo infantil e indiferenciado sofrerá influência de hormônios, aumentando a sua estatura, força física e modificando os caracteres sexuais, tornando-o apto à sobrevivência independente e à reprodução. Meninos e meninas que antes poderiam apresentar algumas poucas diferenças físicas se tornarão homens e mulheres com funções biológicas distintas. Essas transformações físicas são acompanhadas de mudanças psicológicas e sociais também bastante importantes. Seja em sociedades primitivas ou modernas, haverá expectativas distintas para o desempenho de papéis sociais e comportamentos. Essas expectativas estão mudando a passos largos, principalmente em sociedades mais desenvolvidas, porém não houve tempo suficiente para que essas mudanças fossem assimiladas totalmente e elas não ocorrem de maneira igual.

Erik Erickson em seu famoso trabalho “O Ciclo da Vida” descreve a adolescência como o período da busca da Identidade (Quem eu sou? O que quero para mim? O que farei da minha vida daqui para frente? Quais são os desafios que irei enfrentar?) que se contrapõe a uma fase de intensa Confusão dessa identidade. O adolescente ainda sofre muita influência da família e de seus valores, mas ele passa a questionar esses padrões e a sofrer maior influência do seu entorno como os amigos e a escola. Hoje essa influência se estende também às mídias sociais (o que é algo muito recente, cujo impacto não foi ainda totalmente compreendido pelos pesquisadores).

Estudos mais recentes sugerem que o cérebro continua sua construção durante a adolescência e início da vida adulta (dos 10 aos 24 anos), sofrendo influência de diferentes fatores como a nutrição, genética e condições do condições de nascimento, hormônios sexuais e do meu ambiente.

A adolescência é um período marcado pela inconstância, intensidade, impulsividade e pressa. Hoje é possível entender esse padrão comportamental como algo determinado biologicamente que, porém, sofre forte impacto do momento em que vivemos de intensas mudanças de padrões, conceitos e modelos.

Os avanços tecnológicos e a rapidez da informação trouxeram a essa fase da vida uma maior aceleração e maior risco de exposição com menor controle dos pais e do próprio adolescente. O chamado cyberbullying é resultado desse avanço, onde um grupo de adolescentes pode por diferentes razões expor e humilhar via internet um determinado jovem por diferentes razões (sociais, sexuais, étnicas) com uma simples postagem.

O adolescente e o suicídio

É nessa fase da vida, de intensas mudanças, buscas, incertezas e instabilidade que o jovem por diferentes razões se torna extremamente vulnerável a problemas emocionais de gravidade distinta que poderá levar ao suicídio.

O suicídio é a segunda causa de morte violenta entre os jovens americanos segundo dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças Norte-Americano (Center for Disease Control and Prevention, 2013). Os números e as razões para o suicídio variam conforme diferentes estudos, mas existem fatores comuns presentes entre os adolescentes que os tornam particularmente vulneráveis como o comportamento agressivo, a impulsividade, a tendência a tomada de decisões arriscadas, a presença de quadros psicopatológicos e hábitos de risco, problemas de interação com os pais e os pares, baixa escolaridade e falta de perspectiva de vida.

O uso de álcool e outras drogas, a depressão e traços de personalidade com características instáveis aumentam o risco de forma bastante significativa. Em um estudo de 2015 de King e colaboradores, que avaliou o perfil da população adolescente atendida em emergência psiquiátrica, cerca de 38% apresentavam simultaneamente comportamento suicida, depressão e uso de substâncias psicoativas

Famílias com problemas de relacionamentos com experiência de violência doméstica, especialmente onde o pai é agressivo apresentam maior tendência ao comportamento suicida nos jovens quando comparado a famílias estruturadas.

Excesso de pressão, falta de reconhecimento pelo esforço diante dos desafios enfrentados ou extrema valorização pelo desempenho escolar podem se tornar o gatilho para o suicídio como única forma de saída diante da frustração de não atender altas expectativas dos pais.

Questões relacionados à orientação sexual ou de gênero do jovem são importantes deflagradores de conflitos familiares que culminam com importantes crises na interação desses jovens com seus pais e demais familiares, que em não vendo alternativa para seus conflitos, sentindo-se sem esperanças ou culpados por sua condição acabam cometendo o suicídio como única saída para essa situação de vida.

Comportamentos suicidas em adolescentes estão relacionados a prejuízos psicossociais, sofrimento pessoal e familiar, internações psiquiátricas e a grande possibilidade de novas tentativas de suicídio no futuro.

Em muitos casos as tentativas não são planejadas, ocorrendo em um ato impulsivo e sua gravidade será mensurada pelo acesso a métodos letais como armas de fogo e morar em locais altos sem proteção.

O risco de suicídio em adolescentes muitas vezes não é sequer identificado pelos pais, professores e pessoas próximas a eles e consequentemente não são tratados. Muitos adolescentes que morreram em sua tentativa de suicídio nunca haviam passado por um atendimento psicológico ou psiquiátrico, sendo que cerca de 50% dos adolescentes obtém “sucesso” em sua primeira tentativa de suicídio.

O tratamento e a prevenção

Existem mitos ideias errôneas sobre o suicídio que o torna um assunto difícil e até certo ponto proibido. O receio que falar sobre o tema possa influenciar o individuo a se matar faz com que essa pergunta não seja feita pelos pais ou professores, mesmo pelos profissionais de saúde no atendimento do adolescente. No quadro abaixo está uma lista mitos e verdades sobre o suicídio que precisam ser esclarecidos como primeiro ponto na direção do tratamento e prevenção.

MitosVerdades
1.     Quem fala que quer se matar, não quer morrer de verdade.

2.     Suicidas têm sempre a intenção absoluta de morrer.

3.     Ocorrem sem aviso.

4.     Nem todos os suicídios podem ser prevenidos.

5.     Uma vez suicida, sempre suicida

6.     Quem comete suicídio não está doente de verdade

1.     A maioria dos que se matam, relataram sua intenção pelo menos uma vez.

2.     A maioria é ambivalente.

3.     Suicidas frequentemente dão ampla indicação de sua intenção.

4.     Verdade em alguns casos, mas pode-se prevenir a maioria.

5.     Pensamentos suicidas podem voltar, mas eles não são permanentes.

6.     Ao contrário, quem comete suicídio está tão doente que não consegue encontrar outra solução para sua doença.

Entender que o indivíduo que se suicida está doente, que precisa de tratamento especializado, que o julgamento moral só piora o quadro e aumenta o risco de novas tentativas mais graves, que existem patologias físicas e psiquiátricas associadas (principalmente a depressão e uso de substâncias psicoativas, mas não somente elas) e que é sim possível prevenir e mudar o curso dessa doença faz com que seja fundamental que se crie estruturas e políticas públicas de atendimento e prevenção para o atendimento do paciente com comportamento suicida.

O vácuo do serviço público para atendimento em saúde mental de crianças e adolescentes criam uma desassistência na situação de crise. A incapacidade dos pais e professores de perceberem sinais que indicariam o risco para suicídio, fazem com que ocorram os chamados suicídios sem aviso prévio. Muitas vezes os sinais foram dados de forma indireta, em comentários soltos, em mudanças de comportamento e interesses e a manutenção do foco apenas no bom desempenho escolar e bom comportamento fazem com que esses sinais sejam ignorados.

Mesmo nos jovens que fazem avisos constantes e que se fica com a ideia de que ele esteja somente querendo chamar a atenção é importante entender o porquê desse comportamento. Sobre o que ele está querendo chamar a atenção para utilizar uma forma carregada de sofrimento e carga dramática.

De qualquer forma e em qualquer situação é importante que pais, professores e demais adultos entendam que o suicídio nos jovens ocorre, que é necessário buscar ajuda especializada, cobrando do poder público a assistência psicológica e psiquiátrica em casos de risco (por ex, em adolescentes que já fizeram tentativas anteriores ou que estejam com quadro depressivo ou passando por intenso sofrimento psicológico). A não-avaliação impede medidas protetivas e de prevenção na situação de crise aumentando a chance de uma tentativa ao longo do tempo. Mesmo no adolescente que está bem, mas que apresenta maior instabilidade do humor, tendência a um comportamento impulsivo, é preciso ter um olhar cuidadoso.

Criar com esse adolescente um canal aberto de comunicação, favorecendo que ele traga seus conflitos e dúvidas, sentindo-se amparado e com a possibilidade de desenvolver a esperança de melhores momentos constituem medidas preventivas bastante eficazes.

Nos casos em que existem um transtorno mental, problemas emocionais e de relacionamento graves ou uso de substâncias psicoativas faz-se necessário o tratamento especializado.

Algo que nunca poderá ser colocado em dúvida é a necessidade de que o suicídio precisa ser tratado com prioridade, de forma atenta e cuidadosa.

Esse é um cenário mundial que precisa ser modificado e rápido.

Referências

  • Papalia D.E., Feldman R.D. Desenvolvimento Humano, Porto Alegre. Grupo A Editoras, 12ª Edição, 2013.
  • Arain M, Haque M, Johal L, Mathur P, Nel W, Rais A, Sandhu R, Sharma S. Maturation of the adolescent brain. Neuropsychiatr Dis Treat. 2013; 9:449-61.
  • Brent DA, Koplewicz HS, Steingard R. New approaches to the assessment and treatment of suicidal adolescents. J Child Adolesc Psychopharmacol. 2015 Mar;25(2):99.
  • Tais Michele Minatogawa-Chang, Débora Luciana Melzer-Ribeiro, Chei Tung Teng, Miguel Angelo Boarati – “Avaliação e manejo do paciente com risco de suicídio” no livro CLÍNICA PSIQUIATRICA DE BOLSO – Orestes Vicente Forlenza, Eurípides Constantino Miguel, orgs, 2. ed. rev. atual. – Barueri, SP: Manole, 2018 – páginas 689-705.
  • Scivoletto S, Boarati MA, Turkiewicz G. Psychiatric emergencies in childhood and adolescence. Rev Bras Psiquiatr. 2010;32(Suppl 2):S112-20.

*Miguel Angelo Boarati  é médico psiquiatra da infância e adolescência formado pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

Professor de Medicina da Faculdade das Américas (FAM).

Foi supervisor de médicos residentes em psiquiatria da infância e adolescência do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP-SP de 2006 a 2016.

Colaborador do Programa de Transtornos Afetivos na Infância e Adolescência do IPq-HCFMUSP e autor de livros, artigos e capítulos referentes a esse tema.