A formação do educador social e a Pedagogia da Convivência – Por Maria Stela Santos Graciani*

pmadmin Publicado em 04/06/2012, às 00h00 - Atualizado em 19/09/2014, às 19h33

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4 de junho de 2012


Fonte: www.fbb.org.br

Os excluídos, aqueles que não têm vez nem voz, têm sido esquecidos ao longo dos séculos pelas políticas públicas do Brasil. A exclusão se dá nos planos social, cultural e econômico, e se manifesta na falta de acesso a condições dignas de vida, como habitação, saúde, educação e lazer, causando danos irreparáveis, como a perda da autoestima e da identidade, entre outros. Entre os excluídos estão: doentes, mendigos, prostitutas, encarcerados, idosos, crianças e adolescentes de rua, e tantos outros.

Essa massa excluída clama por uma sociedade democrática, menos discriminadora, mais igualitária e mais justa, pois anseia integrar-se à vida em sociedade, assumindo os deveres e desfrutando dos direitos fundamentais de cidadão. O grau máximo de exclusão é atingido quando o povo internaliza a cultura dominante, o que ocorre, especialmente, via meios de comunicação. A mídia falseia a realidade e direciona a vontade política da população. Apenas em alguns poucos momentos, a cultura popular se manifesta, como no carnaval, na música, na dança e na religiosidade.

É necessário criar condições para a transformação dessa realidade, pois faltam mecanismos para reverter a subalternidade, a tutela e o clientelismo político. Mudanças consequentes e profundas, porém, apenas acontecem quando há uma ação educativa que questione os valores estabelecidos e proponha novas possibilidades de participação social. Para tornar o cidadão apto a compreender a dinâmica da sociedade e a desenvolver mecanismos de participação, com consciência crítica e autônoma, é preciso romper com a visão ingênua que se tem das forças políticas e dos interesses econômicos que sustentam o status quo que se quer transformar. E é necessário romper com a visão idealista do próprio trabalho educativo, o que significa que o saber pedagógico deve questionar seus pressupostos, seus hábitos e tradições.

Fazer pedagogia hoje é confrontar-se com a diferença, superar o preconceito e promover a emancipação. A reflexão pedagógica, portanto, deve submeter à crítica preconceitos culturais e educativos; questionar a relação homem-sociedade, homem-mulher e homem-meio ambiente; propor novos valores e modelos antropológicos e culturais, promovendo, com isso, a compreensão, a tolerância, o respeito e o intercâmbio multicultural. Nesse contexto, ganha relevância o trabalho do educador social, especialmente por atuar além das iniciativas convencionais de ensino, o que lhe permite desenvolver, com mais radicalidade, práticas pedagógicas alternativas, direcionadas à transformação da realidade. Para essa missão, é preciso coragem, intuição, percepção, compromisso social, maturidade pedagógica e capacidade de trabalho em grupo.

Reinterpretar papéis

É difícil encontrar um educador pronto para participar dessa tarefa desafiadora: um educador que compreenda a realidade socioeconômica e cultural que o cerca e que assuma responsabilidades sociais e profissionais como agente de transformação social. É necessário investir na capacitação desse educador, valorizando nesse processo a reflexão problematizadora sobre a prática educativa. Ao serem confrontados com as condições sociais sob questão, os educadores vão reinterpretando seus papéis, ampliando sistematicamente suas competências, e, assim, se colocando a serviço de ideias e ideais de uma educação democrática e libertadora.

Para uma ação consequente, exige-se do educador social uma visão problematizadora da realidade que atravesse o saber que ele traz consigo, passe pelo referencial teórico apreendido e chegue até o cotidiano que se quer transformar. Esse é o caminho para a formação de um educador emancipado, ético, autônomo e, acima de tudo, político, que se articule com outros agentes do processo educativo e se organize coletivamente para a construção permanente de um conhecimento transformador e para elaboração conjunta de propostas de intervenção.

Para romper com práticas educativas equivocadas e discriminatórias, convém adotar, na formação do educador social, uma visão de mundo profunda e crítica, como a proporcionada pelo pensamento complexo (MORIN, 1998), que não fragmenta a realidade em relações binárias (mal/bem, oriente/ocidente, certo/errado), mas a vê com entrelaçamentos inter-relacionados em que cada elemento depende do outro. A partir desse novo olhar sobre a realidade, que amplia a visão de mundo, da sociedade e do homem, será possível corrigir rotas, redefinir caminhos, rever posturas inadequadas e buscar novas formas de trabalhar.

Pela prática reflexiva e problematizadora, o educador reinterpreta o seu papel como sujeito histórico, crítico e criativo, passando a se reconhecer como sujeito da ação educativa, transformador de sua história e da história social. Com essa visão crítica e transformadora, busca-se entender as causas dos fenômenos e identificar seus efeitos, para poder resistir criativamente à banalização do mal, das violências, às explorações sociais que há muito tempo têm, de forma avassaladora, atingido o mundo inteiro, como guerras, devastação ambiental, preconceitos religiosos, entre outros.

Junto com essa postura problematizadora e questionadora que se espera do educador social, é fundamental uma postura de acolhimento e manifestação de amor e respeito ao outro, expressada na disponibilidade para o diálogo e na valorização das relações solidárias. Quando nos sentimos acolhidos, ouvidos, valorizados, integrados e amados, desenvolvemos a autoestima e nos disponibilizamos para a aprendizagem. É essa a proposta da chamada Pedagogia da Convivência (JARES, 2006), também conhecida como “pedagogia do coração”, e que está no cerne do modelo educacional do Programa Integração AABB Comunidade1, objeto de reflexão de vários artigos neste Eixo do livro.

Pedagogia da Convivência

A Pedagogia da Convivência reconhece que são direitos legítimos da criança e do adolescente o direito à liberdade, à dignidade, à integridade física, psicológica e moral, à educação, à saúde, à proteção no trabalho, à assistência social, à cultura, ao lazer, ao desporto, à habitação, a um meio ambiente de qualidade e outros direitos sociais, individuais e coletivos diante do Estado e da sociedade. A Pedagogia da Convivência se instaura no âmbito das relações sociais e da experiência concreta do convívio cotidiano dos educadores com as crianças e adolescentes, pais, formadores, mediadores e instituições. Ela se baseia, portanto, em determinadas relações sociais e em códigos valorativos marcados pelo contexto de uma sociedade historicamente constituída.

Compreende-se assim que, embora os processos de convivência e os conflitos decorrentes sejam inerentes a todas as formas de organização social, cada comunidade desenvolve, a partir do contexto social e histórico do qual participa, acordos singulares de convivência. E esses acordos irão definir em que patamares se darão os relacionamentos, as interações e as experiências afetivas propostas pela Pedagogia da Convivência ou pedagogia do coração.

Visibilidade e inclusão

A negação do outro, diferente de mim, tem sido considerada, no mundo contemporâneo, um dos piores fatores geradores de conflitos sociais, dissabores pessoais, revoltas e agressões, entre outros. A invisibilidade do outro que está ao meu lado é um dos componentes do processo da exclusão, seja ela causada por preconceito étnico, cultural, religioso, por discriminação de gênero, opção sexual ou desigualdade social.

O ser humano não gosta de se sentir segregado, solitário, abandonado, pois essas situações causam medos, angústias, esgotamentos físicos e emocionais, sentimentos de autodesvalorização, impotência, fragilidade e desesperança. Somos seres integrais, plenos, que desejamos ser cuidados e merecemos ser reconhecidos em nossa singularidade, exclusividade e potencialidade, para participar da construção coletiva de possibilidades de uma vida comunitária saudável e profícua.

Se todos devemos estar entrelaçados, abraçados e inter-relacionados para viver em plenitude, então precisamos ver e enxergar, ouvir e escutar, tocar e sentir uns aos outros. A Pedagogia da Convivência propõe reaprender a utilizar nossos espaços de interação para melhor compreender o outro e suas intenções. É necessária, para isso, uma ética do diálogo que estimule o questionamento, com liberdade, sinceridade e respeito mútuo, sem determinação institucional. Perguntar mobiliza quem questiona e quem formula a resposta.

O que define uma cultura é o conteúdo das redes de conversação que a compõe. Os processos dialógicos acontecem entre os interlocutores, no espaço comum criado entre eles ou por eles. No caso que estamos analisando, ocorre entre o educador e o educando, sujeitos do processo de aprendizagem. Olhar, reconhecer e acolher o outro significa percebê-lo sob várias e diversificadas dimensões expressivas: na linguagem escrita, falada, na expressão corporal, na produção de imagens e símbolos, enfim, em todas as possibilidades através das quais possa se expressar.

Cada pessoa se identifica com uma linguagem, ou seja, com uma forma de expressão. Por isso, é importante que o educador social seja motivado e preparado a experimentar diferentes linguagens, como teatro, música, dança, desenho, pintura, dobradura, colagem, expressão corporal e outras técnicas.

Em muitos processos educacionais, se nega, se manipula ou se permite a expressão apenas da unidimensionalidade do ser. Somos diferentes em relação à ideologia, crença, gênio, perspectiva, modo de vida, pensamento, modos de entender o mundo, etc. Na leitura dos diferentes textos expressivos, podemos melhor perceber a pluralidade da pessoa humana e a sua importância na composição do grupo.

Quando os seres humanos atingem, pelo convívio, a felicidade solidária compatível com a dignidade humana, essa felicidade se eterniza na própria essência do viver. A fonte da renovação e encantamento se situa no próprio desejo de amar e ser amado, e essa aspiração percorre todos os momentos da vida, por mais fluidos que sejam, pois o que se busca é manter a relação de confiança e companheirismo. Esse desejo pulsante é alimentado na Pedagogia da Convivência ao propor que nos relacionemos de forma benévola com tudo e com todos.

Essa experiência amorosa do ser humano, concretizada em experiências diversificadas na vida e particularmente na educação, necessita ser colocada no epicentro existencial, uma vez que possui a capacidade dinâmica de mover nossos sonhos, nossas utopias, nossas perspectivas. Quando a pedagogia do coração se instaura no corpo da proposta político-pedagógica de nossas ações educativas, concretiza-se a base a partir da qual se poderá construir um outro mundo possível.

Experiência amorosa

Todo processo educativo sistematizado deve ter objetivos especificados e até mesmo metas estabelecidas. Não podemos, porém, ansiar por resultados imediatos, com relação a qualquer projeto educacional que proponha questionamentos e mudanças. Como se trata de um processo de construção coletiva, é preciso reaprender a aguardar o nascer do dia, o cair da noite, a chegada da primavera, as fases da lua, o desenvolvimento das ideias e dos ideais.

Os prazos estabelecidos em um processo sistematizado de ensino e aprendizagem devem ser observados, mas essa percepção de uma temporalidade que transcende os calendários administrativos tem que compor as expectativas dos educadores sociais, uma vez que cada educando tem um ritmo singular de aprendizagem, de percepção do ciclo da vida e de apreensão do mundo.

Um projeto de educação libertadora é de difícil aplicação e pode até mesmo gerar conflitos e resultar em eventuais fracassos. Se defendemos uma educação democrática e comprometida com valores da justiça, da paz e dos direitos humanos, temos que ser tolerantes e compreensivos diante dos conflitos, que são inevitáveis, especialmente em ambientes em que se aceita a diversidade. Viver em comunidade exige saber conviver consigo mesmo e com os outros. Significa relacionar-se com a igualdade e também com a diferença.

Convivência humana pressupõe receber o outro com hospitalidade, reconhecê-lo como semelhante, aceitá-lo com suas diferenças e respeitá-lo em seu movimento, não admitindo, em qualquer hipótese, situações segregadoras, excludentes e discriminatórias. Nesse sentido, o educador social deve privilegiar sempre a experiência amorosa, pois esta se constitui em uma das forças mais poderosas em qualquer relação social, seja ela individual, institucional ou grupal, e será fundamental no processo educativo.

O Programa Integração AABB Comunidade procura atuar dentro dos pressupostos aqui discutidos. E investe na formação dos educadores sociais que participam do programa para que os princípios e concepções afetivas façam parte de sua ação pedagógica, como um caminho para a construção de uma nova geração de protagonistas cidadãos do Brasil. E assim, de sonho em sonho, vamos construindo a realidade que almejamos: que é uma sociedade justa, igualitária e afetuosa.

* Maria Stela Santos Graciani é Doutora em Educação pela USP;  Profª Titular da Faculdade de Educação da PUC-SP; Coordenadora do Curso de Pedagogia e do Núcleo de Trabalhos Comunitários (NTC); Pesquisadora da área da Infância e Adolescência e membro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda); Pedagoga e Mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP. Participou como especialista convidada do Papo de Mãe sobre Inclusão Social, exibido em 03.06.2012.

Referências bibliográficas

GRACIANI, Maria Stela Santos. Pedagogia social. São Paulo: Cortez, 2001.

JARES, Xesus R. Pedagogia de la convivencia. Madrid: Editora Grão, 2006.


MELLO, Thiago de. Faz escuro, mas eu canto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.


MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Paris: Flamarion, 1998.

Fonte: Fundação Banco do Brasil




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