Roberta Manreza Publicado em 13/12/2016, às 00h00 - Atualizado em 14/12/2016, às 09h42
Por Victor Mendonça*
Quando eu estava no meio de minha adolescência, vivia com tanto medo e insegurança que a simples ideia de sair de casa para fazer vestibular me colocava numa masmorra de ansiedade. Aos poucos, havia construído a educação inclusiva no colégio em que estudava, com firmeza mas sem imposição. Os profissionais que me cercavam precisavam estar conscientes da fobia social que me prejudicava. Com isso, ganhei mais confiança. Ainda assim, era um desafio. Passei muito mal nos dias próximos ao meu vestibular. Vomitava muito e meu nariz sangrava bastante.
Talvez por também ser autista, embora não soubéssemos à época, minha mãe nunca deu conta de me ensinar ou me acompanhar em algumas coisas, como andar de ônibus, receber visitas em casa ou sair para encontrar outras pessoas. Consciente dessa dificuldade, que inclui ser muito ansiosa e ter dificuldade para localizar os lugares, para evitar que eu me prejudicasse, ela pediu a ajuda. Assim, uma prima que eu adoro iria me levar ao local que era a prova. Rebecca, essa minha prima, foi quem me ajudou a ter tranquilidade para lidar com todo o estresse. Escolhi fazer o vestibular tradicional porque embora com o mesmo grau de dificuldade do ENEM, esse vestibular tinha menos questões e textos menores, o que não confundia a minha cabeça (eu também tenho TDAH). Tive ledora e fiz a prova em sala separada.
A escolha do curso era algo que eu não fazia ideia até pouco tempo antes do vestibular. A confiança que queria fazer jornalismo não por ter pais jornalistas, mas porque gostava de escrever e acompanhar notícias, determinou minha decisão. Ter procurado perceber minhas habilidades facilitou essa escolha. Nós, autistas, temos medo de não sermos independentes e, às vezes, não recebemos o estímulo necessário para desenvolver essas habilidades (talvez porque, muitas vezes, elas fujam do padrão esperado para a idade).
O curso de jornalismo mostrou-se muito mais do que fazer uma boa redação. Eu ainda não sei se quero trabalhar com jornalismo puro, mas sem dúvida é um curso que me ajuda a trabalhar uma série de habilidades que eu sempre quis desenvolver, inclusive sociais. Minha mãe dizia que era muito tímida e escolheu essa profissão que a fez mascarar essa timidez. Eu também fiquei mais sociável e despertei para habilidades de comunicação que iam além da escrita, com uma fala muito mais articulada. Isso me deixou mais feliz para interagir com pessoas até em minha vida pessoal.
Pela primeira vez, me senti parte de um grupo e isso ocorreu na faculdade. Eu até tinha amigos no ensino médio, alguns que mantenho contato até hoje, mas ainda assim me sentia diferente e deslocado. Agora, na universidade, em que continuo falando abertamente sobre minha condição, sinto que sou membro do meu grupo de amigos, independente de ter a Síndrome de Asperger. Essa sensação é muito boa. A interação na faculdade é importante. Existem muitos trabalhos em grupo e essa afinidade contribui para o sucesso. A turma, como um todo, também representa um grupo muito mais heterogêneo, o que facilita a todos aprenderem com a diversidade. Todos nós saímos ganhando.
O aluno autista tem uma série de direitos legais que não devem ser ignorados e acionados quando houver necessidade. Um deles é adaptação no plano de ensino. O conteúdo cobrado é o mesmo, mas a forma tem de ser diferente porque o nosso cérebro tem funcionamento fora do padrão e o autista se desgasta muito mais para realizar as mesmas atividades que os colegas neurotípicos. Essa exaustão ocorre, em especial, porque despendemos um grande esforço para decodificar as informações e estímulos. As pessoas não autistas não conhecem essa sensação, então é comum aos educadores que tentem extrair mais um pouco de esforço do autista do que ele dá conta. Isso deve ser conversado e negociado. No meu caso, tento combinar com os professores para fazer menos trabalhos valendo mais pontos e as provas também são adaptadas.
Outro fator importante é a mediadora. Eu não tive esse acompanhamento antes da faculdade, porém as dificuldades de comunicação, que vão muito além da ausência ou não de fala, estão no nível da interpretação, me fizeram solicitar esse auxílio. Isso aconteceu quando fui para o terceiro período do curso, pois era como se os professores e outros alunos falassem em uma língua diferente da minha. Além disso, o curso de jornalismo foi transferido para um campus muito maior e a noção de espaço é problemática para mim.
A mediadora não é alguém que tira a autonomia do aluno. Ela é uma espécie de tradutora/decodificadora que dá condições ao autista de realizar as mesmas tarefas dos colegas. Do contrário, haverá muito desgaste, aumentando a possibilidade de crises com queda no desempenho devido às incompreensões do que é passado de forma genérica para a turma.
Eu estou muito satisfeito com o curso que faço, gosto de muitos colegas e professores, mas é importante lembrar que a inclusão escolar continua sendo uma construção diária em que não podemos ligar o piloto automático. A coordenação, o núcleo de orientação psicopedagógica e mesmo os professores erram, muitas vezes, por suas certezas absolutas, ou por ainda desconhecerem a realidade do aluno autista. Quando há uma pressão para que não seja cumprido algum direito, é preciso que estejamos atentos para nos posicionarmos, pois isso pode gerar um dano muito grave na vida do autista. Acho maravilhoso o respaldo da lei, mas não quero nunca estudar numa escola que não me queira. Com o diálogo, sinto que todos, na faculdade, têm aprendido muito comigo. E eu também tenho aprendido muito com eles.
*Victor Mendonça é autista, escritor, youtuber, estudante de jornalismo e palestrante. Junto com sua mãe, a jornalista Selma Sueli Silva, ele comanda o canal do youtube Mundo Asperger. Site: http://mundoasperger.com.br
Fotos: Arquivo pessoal
Em tempo: Na noite de ontem, 12/12/16, Victor recebeu o Grande Colar do Mérito Legislativo da Câmara Municipal de Belo Horizonte em razão do importante trabalho de conscientização do autismo que realiza. A premiação é entregue, anualmente, a pessoas ou instituições de destaque municipal, estadual ou nacional, em diversas áreas de atuação.
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