Corregedoria quer saber se promotor errou ao não oferecer a denúncia dentro do prazo
Mariana Kotscho* Publicado em 05/03/2021, às 00h00 - Atualizado em 18/03/2021, às 19h12
EXCLUSIVO
A Corregedoria do Ministério Público de São Paulo abriu uma apuração para analisar a conduta do promotor Fernando Bolque, no caso da torcedora palmeirense Érica Ceschini, que foi assassinada a facadas pelo marido. O assassino foi solto após cumprir prisão preventiva por 25 dias. A reportagem do Papo de Mãe conseguiu a informação com exclusividade após solicitar para a assessoria de imprensa do MPSP uma posição sobre o caso. A solicitação foi encaminhada à Corregedoria que informou oficialmente que seria feita a apuração.
Leonardo Ceschini, que confessou ter matado a esposa Érica Fernandes Ceschini após uma discussão sobre futebol, saiu da prisão na semana passada por determinação do Tribunal de Justiça de São Paulo .
Ele havia sido preso em flagrante no dia 31 de janeiro e confessou o crime. A decisão da juíza Giovanna Christina Colares foi com base em “excesso de prazo na prisão cautelar do acusado”.
Segundo o alvará de soltura, expirou o prazo de cinco dias para que o Ministério Público oferecesse a denúncia. A decisão da juíza afirma ainda que “a prisão do indiciado representa nítido constrangimento ilegal, devendo ser imediatamente relaxada”.
O promotor responsável pelo caso, Fernando Bolque, disse que não houve inércia do Ministério Público no processo. Advogados ouvidos pela nossa reportagem disseram que com a soltura fica muito mais difícil que o assassino volte a ser preso, ou então será preso só daqui a uns 15 anos.
O crime aconteceu na zona Norte de São Paulo. O casal discutiu por futebol após uma vitória do Palmeiras (Leonardo é corintiano). Érica tinha 34 anos e deixou dois filhos gêmeos, de 2 anos, que estão sob custódia temporária da avó materna. A família da vítima tenta fazer com que o caso seja enquadrado como feminicídio.
O acusado foi solto sob o argumento de que houve excesso de prazo na prisão, uma vez que, até então, a denúncia não teria sido oferecida. O argumento tem como base artigo do Código de Processo Penal ao dispor sobre o prazo de cinco dias para oferecimento de denúncia em caso de réu preso.
Ouvida pelo Papo de Mãe, a promotora de justiça (MPSP) Fabiola Sucasas disse que a decisão é passível de recurso e realmente causa indignação:
“O caso teve repercussão nacional porque a sociedade não suporta mais notícias de homens que assassinam esposas, ex-esposas, namoradas, etc, em situação de violência doméstica. Estamos em meio a uma pandemia e pesquisas já tem apontado que houve aumento considerável dos casos de feminicídios. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública trouxe o dado de que no Acre houve aumento de 400%; 157,1% no Mato Grosso; 81,8% no Maranhão; 75% no Pará e 46% em São Paulo. Viver sem violência é um direito fundamental das mulheres e isso, por mais óbvio que se possa parecer – até porque o direito à vida é um direito de todos – é preciso reforçar o tempo todo, porque para as mulheres esse direito tem sido violado de forma sistemática por homens que insistem na ideia de que elas são suas propriedades e que podem controlá-las, decidindo se elas devem ou não viver”. (FS)
MK: Isso não deixa em pânico as vítimas de violência doméstica?
FS: As mulheres em situação de violência que não rompem com o silêncio costumam fazê-lo por uma série de motivos. O Instituto Data Senado, em pesquisa de dezembro/19, apurou que, dentre o medo, a dependência econômica, a preocupação com os filhos, o fato de não existir punição aos autores de violência doméstica é um deles, correspondendo a 22% deste silenciamento. Atitudes negativas de profissionais nas respostas às mulheres ou respostas inadequadas são também motivos apontados pela doutrina como fatores que prejudicam ou afastam pedidos de ajuda de mulheres em situação de violência.
MK: Com isso este homem vai ficar solto?
FS: Enquanto a decisão não for reformada ou nova prisão for determinada, sim.
MK: Ficou mais difícil mantê-lo preso ou ainda há possibilidade de ele ser preso em breve novamente?
FS: Essa aferição dependerá do Tribunal que eventualmente analisará o recurso, se ele foi interposto.
MK: Há risco de este homem ficar com os filhos e levar uma vida normal?
FS: Temos a Lei 13.715/18, que alterou o Código de Processo Penal, o Estatuto da Criança e do Adolescente, e o Código Civil para dispor sobre hipóteses de perda do poder familiar pelo autor de determinados crimes contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar ou contra filho, filha ou outro descendente, previu que a condenação criminal do pai ou da mãe não implicará a destituição do poder familiar, exceto na hipótese de condenação por crime doloso sujeito à pena de reclusão contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar ou contra filho, filha ou outro descendente.
Agora, levar uma vida normal, acredito que nunca. Ainda que eu aqui esteja atribuindo uma resposta subjetiva, não acredito que seja possível levar uma vida normal quando se tira a vida de outrem; mesmo que direitos sejam garantidos, seria frieza demais acreditar que é possível voltar à normalidade dentro da crueldade e pequenez de espírito em meio a uma tragédia como essa; mas talvez, para o homem machista autor de crime contra mulheres, que não costuma reconhecer sua responsabilidade e usualmente atribui à vítima a culpa de seus próprios atos, não seja esse o caráter de pensamento. O fato é que a mulher que morreu, não.
Para o advogado Iberê Bandeira de Mello, houve uma certa desídia (falta de esforço) e falta do senso de urgência necessária para dar o início a ação em um caso importante como esse.
“É triste ver que ainda não se disseminou o real entendimento da amplitude da lei Maria da Penha e o caráter simbólico da punição e da prisão como medida preventiva para os autores de Feminicídio como no presente caso. Há uma epidemia no país de violência contra as mulheres e, na sua maioria, por motivos fúteis e sempre ligados à condição da mulher ou da visão machista dos autores, por evidentemente considerem as mulheres como inferiores ou sem direito à sua própria opinião, devendo se submeter à vontade dos seus algozes.”(IBM)
“Esse caso específico, em que há confissão do autor e o promotor foi avisado sobre a necessidade de respeito ao prazo legal, seria o caso de apresentar a denúncia e aditar a mesma mais à frente caso se comprovasse além do motivo fútil, a premeditação, por exemplo.
Se é verdade que afronta a lei a permanência do acusado preso sem a instauração do devido processo legal em tempo, também é verdade que agora um novo decreto de prisão se torna mais difícil, tendo em vista que o artigo 312 do Código de Processo Penal prevê em quais casos específicos pode-se decretar nova prisão preventiva. Ou seja, vale dizer que existe essa possibilidade, mas, na prática, é bem difícil dele possibilitar esse novo decreto, embora já haja uma investigação referente ao desaparecimento de determinados objetos que devem ter interesse na investigação.
De toda forma, a imediata prisão ocorrida passava à outras possíveis vítimas a sensação de segurança e, se não a certeza, ao menos a possibilidade de punição por esse crime. Com a soltura, se reforça a sensação de insegurança e de impunidade em casos como esse.
É necessário informar a população que a Denúncia de violência doméstica é importante e que essa sensação de impunidade só pode ser mudada com o aperfeiçoamento da lei e do processo. A agilidade na apuração, os meios de investigação e o próprio processo em si devem e serão agilizados com maior participação das vítimas e familiares. A lei foi uma grande conquista, mas somente a criminalização do Feminicídio não é suficiente: há que se exigir das autoridades uma maior celeridade e mais comprometimento com a erradicação da violência.”
Para o advogado, na prática, é bem difícil ele ser preso novamente. Seria necessário que ele cometesse algum dos atos descritos no artigo 312 do CPP : Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado.
*Mariana Kotscho é jornalista e apresentadora do Programa Papo de Mãe
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