É fome

Desmaios de fome: o escritor e ator Vinicius Campos se revolta: "Alguém tem que alimentar nossas crianças, e é agora, é já, é ontem"

Vinicius Campos* Publicado em 19/11/2021, às 09h09

"Fome, e o cérebro dela não tem o básico para aprender", diz a professora do Rio de Janeiro - Foto: Agência Brasil/Arquivo

A mãe levanta da cama e vai até o berço. Sono, cansaço e os bicos do peito que ardem. Nem revezando adianta. O bebê, envolvido em lençóis perfumados e ursinhos de pelúcia, chora. Tem fome. Gruda na teta com desespero. Como come! Vai ser fortão como o pai - comenta o progenitor que durante a madrugada prefere continuar na cama. 

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Do lado de fora do apartamento de luzes baixas e móveis de bom gosto, outras crianças choram de fome. Mães, de desespero. Não tem comida. Nem resto de pão. O único osso que sobrou o cachorro devorou apesar de não ter sobrado nenhum pedacinho de carne. Os peitos da mãe, secos. Os filhos choram. Têm fome. Ela também.

Na escola, a menina desmaiou na sala de aula

Fome, e o cérebro dela não tem o básico para aprender - disse a professora do Rio de Janeiro na matéria da BBC.

Falta tudo. Sobra indiferença.

Na tela da emissora platinada, onde casa de pobre parece coisa de gente rica, e o juizeco suspeito por parcialidade é tratado como celebridade, uma matéria revela que setenta e quatro por cento das crianças atendidas pelo SUS não comem todas as refeiçoes do dia. 

O jornalista lamenta. A matéria termina. Nos comerciais um carro se atreve num terreno montanhoso, a máquina parece capaz de superar qualquer obstáculo, menos a fome. Com a gasolina no preço que está, a máquina também corre risco.

Menos mal que fome de máquina gera indignação. Tem greve de caminhoneiro, tem carta de produtores, tem associação civil, tem engravatado fazendo lobby. Fome de criança, não. Criança nem sindicato tem.

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Tem os direitos das crianças - alguém lembra.

É coisa de criança, na prática elas continuam com fome - o coração desenganado responde.

E não vejo prefeito, governador, nem muito menos presidente indignado.

Não vira tendência no twitter. Nem campanha de famoso.

É só criança com fome. 

Se meu filho estivesse com fome eu me alimentaria de ódio e rancor. Se eu fosse uma criança com fome, desejaria a morte de todos aqueles que comem e se calam.

Não fala isso, menino. Deus não gosta.

Mamãe ensinou e a burguesia aprendeu: é feio falar de boca cheia.

Devia ser o contrário.

Se a boca está cheia no café da manhã, no almoço e no jantar, deveria mais que nunca falar, gritar, e cuspir na cara daqueles que estão vendo nossos pequenos morrendo de fome sem fazer nada. 

Tem que ter um jeito. É claro que tem. Mandar cesta básica, aumentar o orçamento das escolas, mandar ajuda humanitária. Alguém TEM que alimentar nossas crianças, e é agora, é já, é ontem.

Enquanto escrevo vejo nas manchetes que a Igreja Universal foi acusada de desviar 120 milhões de dólares de Angola por ano. Jesus usaria esse dinheiro pra dar comida. Jesus nunca usaria armas. Jesus cuidaria dos mais pobres. E aqueles que falam em nome de Jesus, fazem tudo ao contrário.

Cadê as igrejas? O empresariado e a tão falada bolsa? A Globo e a grande mídia brasileira? Ninguém vai fazer uma carta pública de repúdio? O STF não vai obrigar o governo a usar o dinheiro do orçamento paralelo para alimentar nossos pequenos? Nenhum sindicato vai parar a Paulista? Alô você, lobista de bom coração… Existe lobista de bom coração? O dono do touro dourado… alguém está me ouvindo? Alguém vai levantar do seu aparente conforto e dar de mamar a essas crianças que não param de chorar?

*Vinicius Campos, escritor e pai de 3 adolescentes – Colunista do Papo de Mãe.
Instagram: @viniciuscamposoficial
facebook.com/viniciucamposoficial

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Papo de Mãe. 
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