Educação sem agressão – por Ricardo Cabezón*

pmadmin Publicado em 07/12/2010, às 00h00 - Atualizado às 13h34

7 de dezembro de 2010


Dr. Ricardo Cabezón
Um cômodo e vetusto subterfúgio utilizado por muitos pais, sob o manto educativo, se revela na adoção habitual de práticas violentas como uma pseudo-ferramenta corretiva e resguardadora dos ditames morais da família maculados por atos inusitados de seus rebentos indisciplinados e rebeldes.
Constatamos que essa medida, uma vez aplicada, carrega a crença e a esperança de seus executores no desenvolvimento de uma consciência reflexiva junto a prole com o fito de coibir a reincidência de seus supostos desatinos e ainda a tarefa de sedimentar a autoridade (ou a boçalidade) daqueles que legitimamente detém e exercem desvirtualizadamente o poder familiar, afinal nas suas concepções tal ação traduz a possibilidade de praticarem, incólumes, tais violências sob a excludente do exercício regular de um direito, pautados na máxima de Nicolau Maquiavel “os fins justificam os meios”. Existe até uma graduação para aplicação do corretivo, uma espécie de código de ética, segundo o qual dependendo do deslize aplica-se um puxão de orelhas (ou de cabelos); um tapa na mão (ou no bumbum); um cascudo (ou um beliscão) e para aquelas crianças mais traquinas a famosa surra ou ‘coça’ é a medida mais indicada podendo ser de chinelo, cinto, vara de bambu ou com a ajuda de tantos outros acessórios que incrementam a funesta sessão ‘educativa’. A guisa de exemplo citemos a reação espontânea das pessoas. Não é raro que a população ao identificar em uma novela uma personagem infanto-juvenil má se manifestam favoráveis a devida retaliação de seus pais pelo cometimento de seus atos vis, ou seja, a adoção da ‘justa surra’. Ato que certamente ‘lavará a alma’ de todos os personagens do enredo por ela prejudicados além de propiciar à juvenil vilã, doravante, uma transformação de sua vida. Essa hipotética cena de novela, que certamente será dramatizada em razão do clamor popular, ao ser efetivamente veiculada propiciará ao folhetim índices recordes de audiência: conhecido como o dia da justiça! Com direito às várias exclamações de ‘bem feito!’ revelando a aceitabilidade inconsciente desta cultura popular. Entretanto o governo federal em julho de 2010 reacendeu uma discussão social que já virou uma polêmica nacional: a proibição das palmadas em nossos filhos. Tal questão, ventilada no corpo do projeto de Lei Federal nº 2.654/2003, seguiu para aprovação junto ao Congresso Nacional e busca regulamentar o fim da suposta autorização de aplicabilidade de castigos moderados pelos pais na égide do poder familiar com base na atual redação do artigo 1638 do código Civil que diz: “Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que: I – castigar imoderadamente o filho; II – deixar o filho em abandono; III – praticar atos contrários à moral e aos bons costumes; IV – incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.” Mas afinal, será que a lei vigente oferta guarida aos pais que se valem destes expedientes? Sob o prisma JURÍDICO a resposta é negativa. Vejamos. Há um entendimento desvirtuado que se disseminou culturalmente junto à população no que pertine ao alcance e extensão do poder familiar. Tal instituto aplicado única e exclusivamente aos pais biológicos ou adotivos tem natureza jurídica protetiva e jamais se sobrepõe ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, como também ao da proteção integral da infância e juventude. Destarte, diz o artigo 227 de nossa Lei Maior que: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.  Em sintonia, diz a Lei nº 8.069/90 – Estatuto da Criança e Adolescente: “Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. Art.18 É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. Art. 70 É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente. Art. 232 Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento: Pena-detenção de 6 meses a 2 anos.” O código Penal em ao definir maus-tratos estabelece que: “Art. 136 – Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina: Pena – detenção, de dois meses a um ano, ou multa. § 1º – Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave: Pena – reclusão, de um a quatro anos. § 2º – Se resulta a morte: Pena – reclusão, de quatro a doze anos. § 3º – Aumenta-se a pena de um terço, se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (catorze) anos.”  Encontramos ainda na Lei nº 9.455/97 que tipifica o crime de tortura: “Art. 1º Constitui crime de tortura: … II. submeter alguém, sob sua guarda poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Pena- reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos. (…) § 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de 1 (um) a 4 (quatro) anos. (…) § 4º Aumenta-se a pena de 1/6 (um sexto) até 1/3 (um terço): II- se o crime é cometido contra criança, gestante, deficiente e adolescente”. Deste modo, verifica-se que a hipótese delineada no artigo 1.638 do código civil vigente não trata de um permissivo, muito pelo contrário, o ordenamento civilista prevê mesmo em caso de violência “moderada” a possibilidade do juiz decretar a suspensão do poder familiar com base no art. 1637, o qual observará hipóteses advindas da violação dos deveres contidos no art. 1.634 CC; daqueles consagrados em nossa Carta Magna (art. 227), como também aqueles estabelecidos no rol de legislações específicas acima citadas. Nesse diapasão ressaltamos que nas hipóteses de reiteração de conduta violenta ou enquadrável como lesão corporal de natureza grave além da destituição permanente do poder familiar, o progenitor que lhe der causa também será julgado a luz do que preconiza a legislação penal, o que ratifica o entendimento de que a prática de castigos físicos pelos pais junto aos seus filhos é terminantemente proibida por lei sendo portanto, dispensável a aprovação do referido projeto legislativo, do ponto de vista técnico, para que seja proibido se bater em filhos no Brasil. Realmente, para aqueles pais preocupados com o pleno desenvolvimento de seus filhos, a tarefa de conduzir a educação da prole lhes descortina um panorama desafiador até mesmo pelos exemplos teratológicos que muitos carregam de sua própria infância e adolescência marcada por abusos e humilhações protagonizados por seus pais. Malgrado cumpre ressaltarmos que da mesma forma que a escola encontrou exitosamente novas maneiras de ensinar e motivar seus alunos após a abolição do uso da palmatória e de tantas outras práticas degradadoras, é obrigação de todos aqueles a quem a lei confere as prerrogativas do poder familiar se conscientizarem que tal prerrogativa é muito mais um ‘dever’ do que um ‘poder’ de zelar pelo seu grande destinatário – o(a) filho(a) menor de 18 anos – em consonância com o verdadeiro espírito teleológico da norma que vislumbra um futuro melhor a todas as famílias e por conseguinte a sociedade. Pensemos nisso e busquemos nos aprimorar como seres humanos junto aos nossos entes, afinal diz o adágio “a palavra convence e o exemplo arrasta”. *Dr. Ricardo Cabezón é advogado em São Paulo, presidente da Comissão dos Direitos Infanto-Juvenis da OAB SP, membro da Comissão Municipal de Enfrentamento à Violência, Abuso e Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes, professor de graduação e pós-gradação em Direito, Mestre em Direitos Difusos e Coletivos, Pós-graduado (latu senso) em Docência do Ensino Superior e em Direito Processual e esteve presente como especialista convidado no programa Papo de Mãe sobre PALMADA. Site: http://www.cabezon.com.br/ .




Palmada