Uma crônica do psicanalista Paulo Bueno, um papo de pai. Quem nunca ouvi esta pergunta de um filho: "Hoje já é amanhã?"
Paulo Bueno* Publicado em 18/11/2021, às 11h29
O banho é um dos raros momentos de solidão que a gente tem quando não se é sozinho. Na manhã deste sábado era tudo que eu precisava: a água amornada do chuveiro e o som do silêncio. Girei a válvula, ajustei a temperatura, esperei meu corpo se acostumar à tepidez da água e escutei o silêncio falar: “papai, papai, able a porta! Você tem que ver uma coisa”. Antes que o obstinado silêncio começasse a berrar, destravei o trinco para que o turbilhão pudesse esmigalhar minha pequena porção de exílio.
“Olha!”, disse o garoto mostrando uma foto de alguns meses atrás. “Filho, eu não vejo nada além de duas cadeirinhas, uma mesinha e um tapete ”. “Mas é isso mesmo, eu quelo saber onde está a mesinha”. “Tá no quartinho Pedro, você não usa mais ela há um tempão, pra que você quer?”. “Então você tem que pegar no quartinho papai, eu pleciso dela pla fazer o passado”. Disse e saiu andando, deixando a porta do banheiro entreaberta.
Belo gesto! Montar a cena que foi capturada há meses para novos clicks. Há muitas mães e pais que fazem isso com seus bebês, fotografando-os de tempos em tempos em um mesmo cenário. Num primeiro instante, constatei que não sou desses – de Pedro, prefiro recolher as palavras que ele vai derramando para em seguida recompor em textos. Mas parando pra pensar, eu também não tenho esse desprendimento todo. Tenho uma boa coleção de objetos dos primeiros anos da criança: se vasculhar direito, vai encontrar um body aqui, um livrinho de bebê acolá, um sapatinho com o emblema e cores de nosso time adiante. Acho que guardar quinquilharias é o modo que os adultos têm de refazer o passado. Hoje, e apenas hoje, entendo por que minha mãe guardou durante tantos anos os cordões umbilicais de suas gestações – pontes miúdas de conexão com suas crias. Belo gesto!
A frase – como tantas outras que Pedro pronuncia – ficou ecoando na minha cabeça. Fazer o passado! E ele lá sabe o que é o passado? Até poucos meses atrás me perguntava intrigado quando acordava “papai, hoje já é amanhã?”. Como hoje sempre é o amanhã de ontem, e – vejam só! – como ontem eu havia prometido algo bacana para o “amanhã”, ele ficava feliz ao escutar “sim, hoje já é amanhã”. O que significava que era o dia dos primos visitarem, de comer chocolate ou de ir fantasiado para a escola. Atualmente Pedro não pergunta mais se “hoje já é amanhã”, talvez por saber que eventualmente o amanhã nos reserva sopa de abobora ou agulhada de vacina.
Não sei ao certo se passado é algo que se faça. Suspeito que seja algo a ser elaborado. Um órfão que encontra no meio da bagunça uma caixinha contendo um cordão umbilical, por exemplo, a ele só resta tentar reintegrar de alguma forma esse pequeno laço à sua história. A elaboração é um longo caminho que se dará sobre as pontes que, sozinho terá de construir. Se tem alguma coisa que taca na cara da gente que hoje já não é mais ontem é a orfandade.
Quando abrimos ao léu um livro qualquer, encontramos enorme dificuldade em compreender a página em questão; as páginas anteriores são necessárias para apreensão do sentido. Mas ignorar que a página foi virada, definitivamente virada, é um risco. A orfandade joga sobre nossos ombros o fardo de sermos a geração sucessora. A paternidade, por outro lado, não alivia, mostra que hoje já é amanhã. As linhas escritas na página atual serão inscritas nas seguintes. Nossas palavras, silêncios, omissões, gestos, olhares – tudo isso constitui o legado da geração que vem. Duplo fardo.
Com o chuveiro já desligado, enrolado na toalha, escuto o som do silêncio vindo lá de fora (calando as vozes do meu pensamento):
“Papai, papai, vem cá, o passado vai começar. Não posso fazer o passado sem você”.
*Paulo Bueno: Pai do Pedro, de 5 anos. Psicanalista, mestre e doutor em Psicologia Social pela PUC-SP e docente do Instituto Gerar Psicanálise, Perinatalidade & Parentalidade.
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