A hora do terror: o medo que as crianças sentem

Crianças têm medo. Não o mesmo medo que sente a maioria dos adultos. As pequeninas passam por fases de medo, de acordo com as etapas de desenvolvimento. Existe até aquele medo, que é difícil de separar da famosa “angústia do oitavo mês” dos bebês, medo de que a mãe se afaste e não volte.

Roberta Manreza Publicado em 12/01/2018, às 00h00 - Atualizado às 13h30

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12 de janeiro de 2018


Por Camila Salles Gonçalves*, 

Crianças têm medo. Não o mesmo medo que sente a maioria dos adultos. As pequeninas passam por fases de medo, de acordo com as etapas de desenvolvimento. Existe até aquele medo, que é difícil de separar da famosa “angústia do oitavo mês” dos bebês, medo de que a mãe se afaste e não volte. Crianças de dois e três anos têm medo acentuado de escuro e as de cinco, às vezes, também, acrescido do medo de chuvas fortes e trovões. Por volta de três anos e meio de insetos, de animaizinhos… Em geral, até os sete anos, a normal mistura de fantasia com realidade traz o medo de seres imaginários, de alguém escondido no quarto, de fantasmas ou alienígenas, ocultos nas sombras e que atravessam as paredes. Às vezes, medo de bonecos e objetos estranhos. São medos que passam, quando aceitos e compreendidos pela família. E as crianças, lá pelos oito anos, começam a gostar de filmes de terror, embora se aterrorizem. Que desafio!

Uma menina de oito anos foi levada à psicóloga porque tinha pesadelos. Na avaliação, esta constatou que a criança vivia fase de insegurança associada a conflitos. Recomendou ludoterapia para ela e algumas sessões de orientação para os pais. Durante o processo terapêutico, a garota segredou para a psicoterapeuta que, sempre que podia, assistia a filmes de terror na TV. Isso, escondido dos pais, é claro.

Histórias de terror sempre exerceram atração, a partir de fases da infância de cada um e, ao que tudo indica, a partir de fase, da evolução da espécie humana, na qual a linguagem se torna capaz de brincar com a imaginação e produzir relatos. Um exemplo que podemos trazer à nossa mente agora: uma roda de pessoas, em torno de uma fogueira, de um fogão de lenha, unidas, ouvindo histórias de arrepiar.

Não dá para explicar, mas dá para entender. Cada um pode projetar seus medos e esperanças em personagens, descarregar (a chamada catarse), sem estar sozinho, e até compartilhar. Algumas histórias da carochinha têm personagens universais, como os gigantes, cuja origem não é difícil interpretar. Todos nós enfrentamos gigantes na vida. Pai, mãe, demais adultos, são gigantes, na nossa primeira infância. Gente grande, quando fica brava, pode parecer grande demais e assustar. Quando socorre, protege, vira o bom gigante amigo.

E as bruxas? E os feiticeiros? Há uma infinidade de livros a respeito, pesquisas em várias áreas do saber: História, Antropologia, Literatura, Psicanálise etc. Mas é possível pensarmos a respeito, agora, partindo do mais simples: são seres que transformam as pessoas e que se transformam. Produzem o que é desejado, como transformar uma abóbora em carruagempara Cinderela, ou o que é temido, como a transformação de príncipe em sapo, em fera etc. Enganam os nossos heróis, quando mudam de aparência, como a madrasta, sob a forma de velhinha boazinha, que dá a maçã envenenada para a Branca de Neve.

O poder mágico de transformar gera o estranho, que pode ser muito assustador. Mais assustador ainda, quando faz alguém familiar adquirir um aspecto estranho. Por exemplo, uma figura que era conhecida e não é mais. Parecia confiável e agora parece ameaçadora. É fácil lembrarmos a série de filmes sobre o brinquedo assassino e seu sucesso. Dos oito aos doze, talvez traga um recurso, para a criança ter distância de fantasias semelhantes às imagens que o cinema torna presentes: “- É só um filme.”

Há recaídas no medo? Creio que sim. Mas a criança pode controlar o que se passa na tela, afastar-se, comentar.

É frequente que pré-adolescentes gostem de assistir em grupo a filmes de terror. Um dia, uma menina me deu uma ótima explicação sobre o prazer que ela e as amigas encontravam nisso:

“ – A gente fica bem juntinho, morrendo de medo”. Emoção compartilhada, união, pertença ao grupo. Medo e aconchego. Experiência intensa, numa época em que muitas novas experiências acontecem.

A associação entre o poder de transformar e a força da amizade, presente num grupo de amigos pré-adolescentes que enfrenta grandes desafios, é um dos aspectos centrais das tramas de Harry Potter. Haveria muito o que comentar sobre a brilhante série de livros e a sobre a maestria com que foram transpostos para a linguagem cinematográfica. Mas, aqui, vale ressaltarmos que os heróis sentem medo e enfrentam, juntos, as mais estranhas e assustadoras aparições.

A espécie humana sente medo. À diferença de outras, pode sentir medo do que imagina e, às vezes dar-lhe forma artística. Há mais de dois mil anos, nas palavras de Aristóteles, a tragédia grega despertava “terror e compaixão”. O terror afasta, dá vontade de sair correndo, e a compaixão faz ver o outro, identificar-se.

O medo de monstros, fantasmas, alienígenas que vêm abduzir as crianças etc não pode ser eliminado por meio da simples afirmação adulta de que tais seres não existem. É preciso conversar e, se possível, contar outra história.

E a menina que via filme de terror sozinha e escondidinha? Parece que um dia ela contou pra mãe, mas quando aquilo não tinha mais importância. Não estava mais tão sozinha.

*Camila Salles Gonçalves é Psicóloga, psicodramatista, psicanalista, professora de filosofia, autora (org.), dentre outras obras, de Psicodrama com crianças – uma psicoterapia possível.




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