O psicanalista Leandro Alves Rodrigues dos Santos fala sobre o sentimento de culpa que tanto assombra as mães e de como o comportamento da sociedade acaba contribuindo para isso
Leandro Alves Rodrigues dos Santos* Publicado em 07/06/2021, às 10h30
Exercendo meu ofício de psicanalista diariamente, por mais de vinte e cinco anos, sempre me interrogo sobre as razões pelas quais certas coisas se repetem nas sessões. Uma das que mais me chamam a atenção é a culpa, algo sabidamente tão humano e que, na maioria das vezes, revela-se como uma intensa fonte de sofrimento para os pacientes. E, dentre eles, ouso dizer que as mães são, possivelmente, o grupo mais expressivo.
Pode parecer banal, mas a figura da mãe quase sempre é pareada diretamente com sofrimentos variados, como aliás a expressão clássica “ser mãe é padecer no paraíso” acaba por revelar, como se a maternidade e o sofrimento fossem sinônimos. Afinal, como avançar nessa questão sem cair numa discussão rasa e, principalmente, que vá para além do senso comum?
Fazendo uso de noções da teoria que me orienta clinicamente, a psicanálise inventada por Sigmund Freud, penso que seja interessante iniciarmos conceituando a culpa, definindo-a como um dos afetos humanos mais intensos, algo que em algum momento todos sentimos, em várias situações durante a vida.
É comum também notarmos que a culpa vem depois de uma cobrança interna que nos julga e, fundamentalmente nos exige uma resposta, como por sinal Freud descreveu em seu texto clássico sobre o narcisismo, publicado em 1914, quando dizia que haveria uma tensão entre essas exigências da consciência e, em paralelo, algo que poderíamos qualificar como um desempenho sofrível do ego, uma percepção de ter estado aquém de um ideal, que redunda num sentimento de culpa. Em nossa discussão poderíamos pensar na desconfortável dúvida de ser ou não uma boa mãe.
Logicamente poderíamos nos perguntar: afinal, o que seria uma “boa mãe”? A mãe que a mídia propaga? A mãe que a própria mãe e a sogra cobram da iniciante que acabou de adentrar nesse universo da criação de um filho? Ou a escola que de quando em quando chama essa mãe para algum comunicado/cobrança angustiante sobre os filhos? Bem, exemplos não faltariam, mas considero que seria produtivo se desviássemos o olhar para uma armadilha que prejudica as mães, especialmente as menos atentas. Falo desse ideal de mãe que está no imaginário das pessoas e que, até mesmo por se tornar um parâmetro elevado demais, acaba por se tornar inacessível e, pior ainda, naturaliza um modelo de mãe que só é viável no cinema, que projeta verdadeiras heroínas que cumprem triplas jornadas e, ainda assim, permanecem belas e motivadas, dividem o tempo excepcionalmente bem, parecem nunca se esgotar física e psiquicamente, são esteticamente admiráveis gerando desejo nos homens e inveja nas mulheres, enfim, um inequívoco ideal de mulher.
Entretanto, a vida real que retorna quando saímos do cinema não confirma esse cenário, pois a rotina e a realidade concreta dizem muito mais de dificuldades e obstáculos que, provavelmente as mães de décadas anteriores considerariam irrelevantes, ainda que também estivessem às voltas com outras formas de idealização da maternidade, como por exemplo a limpeza e o asseio da casa, a educação primorosa dos filhos, a saúde do marido e da família, o cuidado com os idosos, enfim, seria ingênuo achar que não haveriam a culpa e os ideais de cada época. Isso sempre existiu e parece nunca cessar, mesmo sendo um fenômeno pouco favorável às mães.
Nesse ponto, mais uma vez Freud nos ajuda, quando publica em 1921 um trabalho sobre a psicologia das massas, no qual esmiuça as possíveis relações entre um indivíduo e seu grupo, em especial nessa relação que aqui nos interessa, justamente com o ideal de um grupo. A hipótese central de Freud é interessante, o membro de um grupo estabelece uma relação com o ideal de um grupo, na verdade seu ego se mistura com o ideal de seu grupo, exigindo fidelidade e, com isso, seria reconhecido obtendo um retorno desse investimento, sendo amado por esse grupo, justamente por compartilhar o mesmo ideal. Trocando em miúdos, se discordarmos dessa lógica, podemos colher consequências, tanto em formas de críticas ou mesmo formas sutis de animosidade advindas do grupo.
Sendo assim, agora fica um pouco mais claro supormos porque esse ideal de “mãe boa” ainda persiste, afinal, isso tudo poderia ser relativizado, transformado em potência para invenção de novos modos de exercício de uma maternidade mais leve e menos culposa. Mas para isso seria necessário abandonarmos ideais de grupo que, talvez, secretamente, admiremos e, no fundo, desejamos alcançar, pagando o preço que for necessário. Nesse campo Freud também desconfiava da presença de um elemento interessante nessa dinâmica, o masoquismo, que é extraído da entrega às exigências da consciência. Mas, claro, mudar isso tudo daria muito trabalho, é mais fácil continuar julgando as mães.
*Leandro Alves Rodrigues dos Santos - Psicanalista, doutor em psicologia clínica (USP) com pós-doutoramento em psicologia social pela PUC-SP. Autor de “A psicanálise no Brasil antes e depois de Lacan: posições do psicanalista nessa história” (Zagodoni, 2019)
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