Minha vida de autista, como não autista

Roberta Manreza Publicado em 03/12/2016, às 00h00 - Atualizado em 06/12/2016, às 13h32

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3 de dezembro de 2016


Por Selma Sueli Silva*, jornalista  

Em final de 2008, descobri que meu filho estava no TEA – Transtorno do Espectro do Autismo. Ele é asperger.  Perguntei ao psiquiatra: “E então? Qual o próximo passo?” Ele disse: “Você deve aprender como funciona o cérebro de seu filho, para ensinar como funciona o nosso.” Tratei de estudar o que era isso imediatamente para verificar, na prática, quais seriam os próximos passos. Talvez, por isso, não tenha vivido o luto. Afinal, havia buscado um diagnóstico desde que ele nasceu. Agora, restava aprender a como lidar com ele. Meu objetivo? Que o Victor tivesse qualidade de vida e que fosse um valor para a sociedade.

Foram muitos desafios – alguns imensos. Cheguei a pensar que não daria conta. Mas minha missão, ao lado de meu trabalho, era criar um valor humano para a sociedade. E que ele tivesse a qualidade de vida, como já disse. Eu não iria desistir tão fácil. Ainda bem, as vitórias grandes ou pequenas, sempre foram muito mais expressivas. Um dia, percebi que a despeito de todo o cansaço, sentia muito orgulho daquele menino que me permitiu uma releitura da vida. Ele foi crescendo e se transformando num parceiro. Até que, a partir do segundo semestre do ano passado, ele lançou o primeiro livro. Criamos a página Mundo Asperger no facebook, que pouco depois passou a ser Mundo Asperger by Victor Mendonça, totalmente administrada por ele. Mas ele queria mais e me arrastou para o projeto do canal Mundo Asperger no YouTube. O sucesso foi imediato. Criamos um grupo no whatssap, no qual conversamos com autistas, profissionais e famílias do mundo todo. Também vieram as palestras, os encontros em Universidades e escolas. Não paramos mais.

Neste ano, em setembro, o acompanhei num Congresso em Montes Claros, cidade do Norte de Minas, com o tema: “O Autismo pelo Lado de Dentro”, promovido pela ANDA – Associação Norte Mineira de Apoio ao Autista. A palestra do Victor, sobre Inclusão Escolar, seria no sábado, dia 03 de setembro. Na sexta, haveria duas palestras à noite. Uma delas, dada por Carol Francisca, asperger e mãe de uma garotinha também autista, me desorganizou. Muito do que ela estava falando lá na frente passava como num filme em minha cabeça. Parecia que ela estava falando de mim.

Alguns eventos em minha vida começaram a fazer sentido. Até os três anos, eu morava em Uberaba e minha mãe vinha de tempos em tempos a Belo Horizonte rever a família. Ela falava para a gente (eu e duas irmãs) fazer xixi, pois não poderíamos fazer na viagem. Conclusão: eu chegava aqui e não fazia mais xixi. Era preciso me colocar numa bacia de água quente e esperar por horas. Lembro de cenas dessa fase de minha vida como se fosse hoje. Como meu filho, só andei com 1 ano e 4 meses. Tinha seletividade alimentar. Meu intestino não funcionava bem, tive muitos enjoos até a adolescência. Era conhecida como uma criança irritadiça e birrenta.

Meus pais se separaram quando eu tinha 3 anos. Retornamos à BH para morar na casa de meus avós. Éramos muito pobres e meus avós não gostaram desse retorno da filha, separada aos 25 anos com 3 netas de 2, 3 e 5 anos. Minha irmã mais velha é que lavava nossas roupas e, cada uma de nós, tínhamos que nos virar, pois a vida de minha avó não era fácil.  O caçula dela era da idade de minha irmã mais velha. Tempos difíceis.

No meu primeiro dia de aula no Ensino Infantil, minha avó me deixou lá e disse: “vá para aquela rodinha perto da professora que ela está lendo os nomes dos alunos”.  A professora acabou de ler os nomes e não leu o meu. Fiquei sozinha no pátio, aos berros. Um adulto veio até mim e me perguntou porque eu estava chorando. Eu disse que eu deveria ouvir meu nome, mas não ouvi. Essa pessoa falou: “mas e você não procurou a outra professora que estava ao lado? São duas salas”. Eu disse: “Não, minha avó disse que essa daqui é que falaria meu nome.” A pessoa riu e me levou para sala. Foi a primeira vez que me senti muito burra.

Esse sentimento de insegurança foi crescendo. Minha mãe trabalhava fora e a gente tinha de se virar porque minha avó não podia cuidar dos filhos dela e da gente. Foram dias em que tudo de errado era nossa culpa. Percebi que minha irmã mais velha era a inteligente, a mais nova (caçula), a bonitinha. Foi aí que decidi ser a boazinha. Assim, consegui que meus tios e minha avó implicassem menos comigo. Uma vez, ao chegar da missa, vi meus tios brincando com minha bola. Desestruturei, reclamei, briguei, descabelei. Gostava de meus brinquedos arrumadinhos no lugar. Minha avó então, para acabar  com o choro, pegou uma faca e rasgou minha bola. Meus tios fizeram uma música para me zoar: “Sueli, caqui. Vai lá e volta aqui. Sueli tem uma bola que não sai do calabouço, Sueli só traz a bola guardada no guarda-louça”. Eu queria morrer! Quanto mais chorava, mais eles cantavam. Já não ligava. Ver minha bola sendo cortada com a faca doeu muito, como se a faca estivesse cortando a mim.

Resolvi, neste momento, estudar muito, pois assim, ao chegar em casa, minha mãe não poderia reclamar do que se passava. A gente morava de favor. O estudo seria nosso passaporte para uma vida melhor.  Mas a escola era muito complicada. Não pelas matérias. O que eu não entendia, eu estudava sozinha em casa, até umas três da manhã, já que não conseguia dormir cedo mesmo.  O que pegava era um sentimento de inadequação. Parecia que ninguém gostava de mim. Eu era a boazinha, ficava caladinha no meu canto. Mas minhas colegas me achavam metida e achavam que eu tirava boas notas porque minha mãe era professora. Elas não sabiam que minha mãe não tinha tempo sequer de olhar nossos cadernos… Ela passava as orientações e eu e a minha irmã mais velha seguíamos à risca. A mais nova era danada, mais solta, o que eu e minha irmã mais velha não conseguíamos entender. Sempre pensei: “Se minha mãe ficar rica hoje, paro de estudar ontem”. A escola era distante. Para passar o tempo depressa, tinha amigos imaginários com os quais ia conversando quando minha irmã não estava comigo. Aliás, meu mundo imaginário era muito rico. O mundo real era complicado demais.

Para dar conta disso tudo criei a Selma – que ia para a escola, e a Sueli – que ficava em casa. Até hoje não sei receber em casa. Como a Selma era a boazinha, ela conseguiu afastar as meninas mais terríveis da vida dela. Não saía para o recreio e vivia com seus cadernos e seu material de escola. A Sueli tinha tarefas em casa, tinha de estudar e adorava ler e assistir “As Panteras” às sextas. Era assim que tudo ficava um pouco mais fácil, já que o estresse com a escola, com a família e, principalmente, com as aulas de educação física, era muito grande.

Quando percebi as mudanças no meu corpo e minha mãe me explicou que eu estava virando mocinha, entrei em pânico. Não queria deixar de ser criança. Olhei meu reflexo num ônibus certa vez e fiz aquela moça que surgia me prometer que não abandonaria a criança que eu ainda era. Assim, fiquei mais calma até um dia que, no CefetMG, no primeiro ano, aos 15 anos, uma colega disse que ficar pulando no corredor não era legal para uma moça, que afastava os meninos. Percebi que a moça já havia chegado e passei a me esforçar para não pular toda a vez que eu queria. Isso me rendeu muita dor de cabeça, ansiedade e agitação. Ficou mais difícil ficar dentro de sala de aula.

Gostava de vestir cores neutras e nada de decotes. Mas minha mãe insistia em me dar roupas com cores berrantes porque, para ela, eu era muito apagadinha e estava desperdiçando a adolescência. Um dia, minha amiga me perguntou se eu não havia percebido que um menino da sala estava de olho em mim. Levei um susto. Eu era louca por ele, mas nunca percebi nada. Essa colega me ajudou. Mas não foi legal. Eu não havia convivido com meninos. Não tenho irmãos. Não sabia como me comportar. Era muito estranho. Passei a fazer o que sempre fiz muito bem: observar para saber como agir. Mas essa época da adolescência foi muito ruim. Os rapazes eram complicados, sempre falando de um jeito e atacando de outro. As meninas um pouco estranhas. Aí me apeguei a uma amiga que gostava de mim do jeito que eu era. Percebi que é sempre bom eleger uma pessoa de suporte.

Embora ame muitas pessoas e saiba que sou amada por muitas também, não consigo ir a festas, nas casas ou receber na minha. Por isso, quando estou com uma amiga no serviço, na escola, ou em qualquer lugar, faço de tudo para ela sentir o quanto é importante para mim para suprir essa falta de continuidade nos relacionamentos. O social me deixa exausta. Odeio fazer compras, sair. Acho mais fácil pedir comida em casa e comprar roupa de sacoleira. Lista de material, ou comprava por telefone, ou arranjava uma papelaria para me fidelizar como cliente.

Entrei na Universidade sem ter feito cursinho e escolhi o curso de jornalismo. Comecei a trabalhar muito insegura se era boa no que fazia. Passei por chefes medíocres e comecei a achar que não entendia nada de nada. Até que um deles me fez a proposta de me demitir numa de suas empresas e me contratar em outra com o salário menor. Todos os outros funcionários tinham aceitado a proposta, pois atravessávamos uma crise econômica. Disse a ele que não fazia o menor sentido dormir ganhando X e acordar ganhando X/2, tendo os mesmos chefes e sendo a mesma profissional. Meu chefe insistiu falando da crise. Disse a ele para não se preocupar que se precisasse, até serviço braçal eu faria, o que seria mais digno do que aceitar a proposta da diretoria.  Aliás, uma diretoria que não havia lido meu último relatório. Nele eu dizia que em seis meses eles abririam falência se não mudassem a política administrativa. Não deu outra. Seis meses depois a sociedade se desfez e a empresa fechou.

Fiquei um ano e meio desempregada e achei que deveria me manter produtiva. Resolvi administrar minha casa. Até mecânica estudei para ver se os mecânicos estavam consertando meu carro direito. A essa altura já estava casada. Um ano depois me tornei assessora-chefe da Previdência Social em Minas Gerais. Tive de viajar muito e isso sempre foi um terror para mim. Aeroportos sempre me apavoravam. Conexão me deixava perdida. Ao chegar das viagens estava numa exaustão tamanha, mas inexplicável aos olhos dos outros. Tratei de dar conta, afinal, todos davam. Isso me rendeu ser alguém que nunca teve uma doença grave mas que vira e mexe passava mal. Mas eu enfrentava mesmo assim. Hora de trabalhar era hora de trabalhar. Dez anos depois, entrei para uma rádio, onde fiz carreira de radialista por 15 anos. Saí ano passado. Nesta rádio, percebi que podemos ser inadequados para uma empresa, por falta ou por excesso de competência. Assumi minhas funções, na medida que eles estipularam para mim para não correr o risco de invadir a área de ninguém.

Depois de cinco anos de casada, resolvi ter filhos. É que eu tinha planejado quando me casar e pensei que para ter filho fosse assim também. Quando vi que essa certeza para ter filho não vinha, como foi com o casamento, resolvi arriscar. Foram dois anos de tentativas. Quando descobri o hipotireoidismo, descobri também a gravidez. Depois do meu filho, ficou mais difícil ser casada, pois antes, meu mundo gravitava ao redor de meu marido, agora ele se afastava e eu tinha um bebê para cuidar. Comecei a me sentir sozinha novamente. Quando me dei conta disso, resolvi que nunca mais seria sozinha pois seria parceira de meu filho. Foi aí que nossa história começou. Quando veio o diagnóstico, um pouco antes, já havia acontecido a separação.

Foi fácil perceber que meu filho era diferente. Sempre fui muito observadora e metódica. Duas características que camuflei, pois haviam me rendido o rótulo de virginiana perfeccionista e metódica. Mas na essência estava lá. Escolhi um livro como referência e um pediatra de confiança. Sabia que fazia tudo certo para obter resultado X mas só obtinha Y. Busquei um psicólogo para me ensinar a educar com ações que surtissem os resultados esperados. Aos 11 anos, veio o diagnóstico. Muita coisa eu estudei, mas muita coisa agi por instinto, pois havia passado por situações semelhantes e conseguido resultados interessantes, durante toda a minha vida.

Quando meu filho lançou o livro “Danielle, Asperger”, ele também notou vários traços do autismo feminino em mim. Pediu que eu procurasse um profissional. Achei graça e deixei pra lá. Então, ele passou a me tratar como autista e, de fato, nossa relação melhorou ainda mais. Quando ouvi aquela palestra em Montes Claros, ele percebeu que eu havia ficado muito mexida. Não me deu sossego mais. Falou com o psicólogo dele que aconselhou e indicou um profissional especialista em autismo, que fosse neutro. Vieram o diagnóstico de TOC, Transtorno da Ansiedade e Asperger. Fiquei confusa e me recolhi por uns dias. Eu havia sido uma fraude? Como assim? Conversei com o psiquiatra do meu filho, que me tranquilizou.

Recentemente, fui a um Ciclo de Debates em Porto Alegre e conheci uma mãe, que soube do diagnóstico no ano passado. Ao final de nossa apresentação, ela disse: “Você é muito parecida comigo. E seu filho muito parecido com o meu que está com seis anos. Eu também desenvolvi estratégias sociais que me permitem ser hoje a responsável pela motivação de um time. Lido com relacionamento humano, numa empresa inclusiva.” Decidi divulgar o diagnóstico. Tem muito adulto sofrendo, não se entendendo. Mesmo com sucesso pessoal e profissional. E assim como eu e meu filho decidimos compartilhar vivências para que nenhuma família se sentisse sozinha como nós nos sentimos um dia, agora eu quero também que nenhum autista adulto continue sofrendo calado, por ter de se adequar a modelos que não são seus, transformando suas vitórias em um caminho de muito sofrimento.

*Selma Sueli Silva é jornalista, radialista, palestrante e mãe do Victor Mendonça, escritor, youtuber, palestrante e estudante de jornalismo. Ambos têm a Síndrome de Asperger, uma forma mais leve de autismo, e comandam o canal  do youtube Mundo Asperger.  Site: http://mundoasperger.com.br

Fotos: arquivo pessoal

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Edição: Clarissa Meyer




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