“Nascer é o nosso primeiro grande desafio”, diz o médico Stanislav Grof

Roberta Manreza Publicado em 14/07/2015, às 00h00 - Atualizado às 09h39

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14 de julho de 2015


Para o psiquiatra, tudo o que vivemos dentro do útero influencia as vivências posteriores. Ele relaciona ainda as birras infantis às dificuldades vividas no momento do nascimento e fala como o parto natural ou a cesárea podem impactar o futuro da criança

Por Paula Desgualdo Crescer

Nascer é o nosso primeiro grande desafio. Mais do que isso. Tudo o que experienciamos dentro do útero materno e na hora do parto modela nossa psique tanto quanto as vivências posteriores ao nascimento. É o que afirma o psiquiatra tcheco Stanislav Grof, um dos maiores nomes da pesquisa moderna sobre a consciência. Nascido em Praga, em 1931, o cientista incorporou ideias de Sigmund Freud, Carl Jung e Otto Rank, e ajudou a formular os princípios básicos da chamada psicologia transpessoal, que integra ciência e espiritualidade.

Depois de anos de pesquisa com o ácido lisérgico (LSD), ele desenvolveu junto com sua esposa, Christina Grof (1941-2014), o método da respiração holotrópica, que permite acessar estados não usuais de consciência por meio da respiração, da música e de trabalho corporal. A técnica reúne elementos da própria psicologia transpessoal e das demais áreas da psicologia, além da antropologia, de práticas espirituais orientais e tradições místicas de todo o mundo. A proposta é que os participantes entrem em contato com seus traumas e também com os recursos internos que possuem para superá-los. Entre outras experiências, a respiração holotrópica possibilita reviver processos da vida intrauterina. É sobre esse assunto que Grof conversou com CRESCER em sua última visita ao país, em abril, quando lançou aqui o livro Cura profunda: a perspectiva holotrópica (Ed. Numina). Confira a entrevista:

CRESCER: Do ponto de vista psicológico e emocional, qual é a importância da experiência do bebê dentro do útero para a sua vida no futuro?
Stanislav Grof:
É extremamente importante. Não só o que acontece no útero, mas o nascimento em si, que é um evento maior e que pode durar horas e horas. É muito curioso que a psicologia e a psiquiatria não considerem a influência crítica dessas experiências na nossa vida. Ambas desenvolveram um mapa da psique que é limitado à vida após o nascimento, como se a história psicológica começasse só aí. Para Freud, o recém-nascido era uma tabula rasa, uma folha em branco. Não há nada do interesse da psicologia que preceda o nascimento, incluindo o próprio parto. E é bastante surpreendente pensarmos assim, porque existe um consenso de que o momento logo após o nascimento é extremamente importante. A ligação e a troca de olhares entre a mãe e o filho são vistos como algo muito significativo para a o relacionamento dos dois durante toda a vida. Também há um consenso de que os cuidados iniciais são importantes e podem realmente moldar a personalidade da criança. Ao mesmo tempo, o processo do nascimento não é visto como um trauma, o que é inacreditável. A menos que haja um dano ao cérebro, não se considera a influência desse processo na vida de uma pessoa. Eu mesmo tinha essa postura. Estudei medicina tradicional e fiz sete anos de psicanálise, três vezes por semana. Tanto a medicina convencional como a psiquiatria e a psicanálise não reconhecem a importância do parto como um trauma psicológico.

C: Ainda hoje, a medicina convencional não dá a devida importância ao nascimento?
SG:
Bom, eu conheci o trabalho com psicodélicos sem acreditar que o nascimento era importante. E essa mensagem ainda é passada aos estudantes de medicina, de que o nascimento não é relevante. De que não pode ser um trauma, não fica gravado na memória. A suposta razão para isso são as bainhas de mielina do córtex cerebral. A mielina é uma substância gordurosa que protege os neurônios. O processo de mielinização não está concluído nos recém-nascidos, e isso geralmente é usado para explicar por que os bebês não se lembram do nascimento. Mas é ridículo. A biologia nos mostra que não é preciso nem ter córtex para ter memória. Eric Kandel [neurocientista austríaco] recebeu o prêmio Nobel de Medicina [2000] por ter estudado o mecanismo de memória em uma lesma do mar, um caracol. Quer dizer que um caracol tem memória, mas um recém-nascido não pode ter memórias do parto porque o processo de mielinização do córtex ainda não está concluído? Tem algo errado com esse pensamento.

C: Já existem evidências suficientes dessa memória do período intrauterino?
SG:
Hoje temos extensas pesquisas mostrando a importância das experiências pré-natais. São várias as indicações da importância da memória pré-natal, da vida pré-natal… Se você toca Vivaldi para mulheres grávidas, por exemplo, e depois para as crianças logo que nascem, elas vão dormir melhor e ganhar mais peso. Há bons motivos lógicos para acreditar que o nascimento é extremamente importante. Mas eu também não tinha essa noção, porque eu vinha de uma formação em medicina tradicional e da psicanálise, onde o parto não é visto como um trauma, e a vida psicológica supostamente começa após o nascimento.

C: Essas experiências são fáceis de acessar por meio da respiração holotrópica?
SG:
A respiração holotrópica é o método que eu e minha mulher desenvolvemos, com respiração acelerada, música e trabalhos corporais. Foi uma tremenda surpresa ver essas experiências emergirem de maneira tão poderosa nas sessões. Algumas pessoas acessam o nascimento e experiências pré-natais muito rapidamente. Como é possível que a gente não reconheça o poder dessas experiências? Elas têm influência na vida, podem originar problemas como ansiedade, depressão, dores psicossomáticas, enxaqueca, dores de cabeça… E também têm um poderoso efeito em como lidamos com a vida e seus problemas. Nascer costuma ser o nosso primeiro grande desafio. Se você teve uma vida pré-natal razoavelmente boa, então o parto será o seu primeiro grande desafio.

C: O senhor pode explicar brevemente quais são as matrizes perinatais que desenvolveu?
SG:
Foi uma grande surpresa quando comecei a usar psicodélicos com pacientes. Um depois do outro, eles começaram a ter experiências de emoções muito intensas, muito profundas, distantes da realidade do cotidiano, associadas a ansiedades, a estar preso e tentar sair, medo de morrer, de ficar louco e não voltar mais… Então me dei conta de que havia uma associação com o nascimento. E, aos poucos, fui desenvolvendo quatro matrizes, caracterizadas por emoções específicas, sensações físicas e alguns tipos de imagens simbólicas, e percebi que elas estavam ligadas a etapas do nascimento. Eu comecei a chamá-las de matrizes perinatais básicas. A primeira está relacionada a um momento anterior ao trabalho de parto, e, se o útero foi bom, pode ser algo muito agradável e feliz, associado a uma sensação cósmica, oceânica. Ou, se a situação não era favorável, se houve problemas tóxicos ou incompatibilidade de Rh sanguíneo, por exemplo, uma mãe que ficou doente, foi abusada ou passou por alguma situação de dificuldade emocional, pode ser bem difícil, com um sentimento de uma ameaça iminente, alguma paranoia. Uma vez que o trabalho de parto começa, você tem uma experiência de ser sugado, engolido ou algo do gênero. Como se fosse sugado para um vórtice. Aquilo se fecha, produzindo um sentimento de estar preso sem poder respirar. Quando as contrações comprimem o cordão umbilical, não há oxigênio. É um estado bem desconfortável, uma situação sem saída. A matriz seguinte é aquela em que o colo do útero já se abriu e há uma situação bem desafiadora, de propulsão, contorções, flexões. E, quando o processo de nascimento está chegando a uma resolução, muitas pessoas têm uma experiência que é mitológica, de morte e renascimento. A transição para a quarta matriz é a experiência de morte e renascimento, para uma luz clara, um arco-íris, coisas do tipo. Esses são os quatro padrões. Eles têm características fisiológicas e anatômicas das etapas do nascimento, mas também uma abertura para o inconsciente coletivo.

C: O desafio do parto pode deixar uma impressão positiva?
SG:
Sim, se você foi exposto ao nascimento e sobreviveu a ele, isso deixa um otimismo no nível celular. A sensação de que, quando as dificuldades surgem, é possível lidar com elas. Se a gravidez foi boa, a duração do parto está na média e a vida pós-natal é boa (uma boa relação entre a mãe e a criança), é muito provável que um impacto positivo seja maior que o aspecto traumático. Mas se você tem, digamos, um parto prolongado que teve que ser concluído com uma cesariana, com fórceps ou algo do gênero, isso deixa uma insegurança em relação aos problemas e as dificuldades que virão. Então, na minha experiência, essas são coisas muito importantes: como é o período no útero, o parto e, claro, a vida após o nascimento.

C: Mas podemos dizer que a experiência do nascimento será sempre um trauma?
SG:
Não sei se um trauma, mas certamente um grande desafio. A maioria das mulheres dirá que foi bem desafiador trazer seu filho ao mundo. E é mais ainda para o bebê do que para a mãe. A questão mais importante aqui é: nós nascemos – estamos aqui, então conseguimos sair –, mas não significa que completamos isso emocionalmente. Imagine horas de asfixia, dor e pressões, sem nenhuma forma de processar. Você não pode gritar, fugir, mal consegue se mexer… O pequeno choro que acontece depois do nascimento não é nada comparado ao que seria necessário para responder adequadamente àquilo. Imagine se tivéssemos um gato aqui, ou um cachorro, e começássemos a fazer com ele o que acontece com o bebê. Você veria um furacão, o animal gritaria, morderia, tentaria fugir, te atacaria… Tudo depende de quanto tempo dura o parto e de quais são as circunstâncias. O impacto positivo pode, sim, ser mais significativo que o trauma. Mas também é possível que o trauma fique em um lugar profundo, e não seja tão fácil acessá-lo.

C: Há algum comportamento da infância que possa ser tipicamente associado à experiência dentro do útero ou ao parto?
SG:
Eu agora acredito que muitos dos ataques birra das crianças, que usualmente são vistos como um problema de disciplina, são na verdade um processamento tardio de todas essas emoções e energias tentando sair. Se você se dá conta de que é um trauma que vem antes de a criança chegar ao mundo, pode poupar muito dinheiro e anos de terapia. Não é um problema de mau comportamento, mas uma velha dor sendo processada.

C: Desde a sua formação em medicina até hoje, quais mudanças o senhor observa na maneira como a cultura ocidental enxerga o parto?
SG:
Eu acho que houve dois grandes desenvolvimentos para os quais temos que olhar. Um é o movimento de distanciamento do parto natural em direção à cesárea. Devíamos saber mais sobre o tipo de humanidade que queremos criar antes de receber 75% ou 85% dos bebês com uma cesárea. O maior problema desse tipo de parto é a rápida transição, em vez de o bebê se esforçar e superar uma situação. Você não tem o estímulo positivo do sistema respiratório. Não tem o estímulo tátil. Esses são alguns dos impactos negativos do parto cesariano.

C: Os médicos não deveriam estar conscientes disso?
SG:
Para os médicos, há uma sensação de controle sobre o processo. Eu me lembro de quando estudava medicina e fazia obstetrícia, não dormíamos muito porque a maioria dos partos acontecia durante toda a noite. É basicamente só estar lá. Você não tem controle sobre aquilo. E os médicos querem estar no comando, como homens. As mulheres americanas, por exemplo, passaram por uma lavagem cerebral, de que a alimentação artificial é melhor para a criança que o aleitamento materno. Alguma pesquisa conduzida por homens sugere que a mãe deveria ver a criança a cada três horas. Então a mãe ignora o seu instinto materno e fica atrás da porta, enquanto a criança grita, só porque o médico disse que ela deve esperar mais 15 minutos. Em vez de confiar no instinto feminino – as mulheres vêm fazendo isso a milhares de anos! –, ela confia na cabeça dos homens. Isso é simplesmente insano. A cesárea é feita de uma maneira que somos treinados para fazer como médicos. Mas o processo tem sua dinâmica própria. É um grande problema. Esse é um desenvolvimento: de algo mais mecânico para um modo de intervenção cirúrgica.

C: Qual é o segundo?
SG:
O outro tipo de movimento é o contrário. Em direção ao parto mais natural. Reconhecer que esse pode ser um evento psicoespiritual, criar um ambiente propício para isso, possivelmente fazer um parto na água. Eu tenho certeza absoluta de que a melhor situação é o parto natural. Você recria algo parecido com a situação pré-natal. A mensagem é: foi difícil, mas agora está tudo bem. E o parto é mais gentil, inclui o pai. Muitos hospitais vão nessa direção, estão criando ambientes apropriados para receber a criança dessa forma. Você pode levar seus amigos se quiser… O que for mais confortável para a mãe.




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