Roberta Manreza Publicado em 12/08/2016, às 00h00 - Atualizado às 23h33
Por José Ruy Gandra*
Gostaria, por conta do Dia dos Pais que já vem virando a esquina, de dividir com vocês que me leem, uma história tão triste quanto exemplar. Feito uma bolha de ar numa garrafa de mel, há um vácuo em minha vida que jamais foi completamente preenchido. Por décadas ele permaneceu em minha alma, feito um coágulo adormecido. Ou como um traço mais forte de giz num quadro negro, que apagador nenhum no mundo conseguiu eliminar. Refiro-me à morte de meu pai. Prematura, súbita e inesperada. Foram necessários anos para que aquela segunda-feira ensolarada de 1978 se tornasse, em mim, outro dia. E décadas para que meu calendário emocional voltasse a fluir com a naturalidade de antes.
Eu tinha, então, 20 anos. Meu pai recentemente completara 54. Pela manhã, como de costume, ele me deixou na faculdade de Direito que eu cursava. Era o primeiro dia de aula do terceiro ano. Ficamos de almoçar juntos, mas ele ligou horas mais tarde para o escritório de advocacia em que eu estagiava e desmarcamos o encontro. Jamais voltaria a escutar sua voz.
Comi algo na lanchonete da esquina e fui fazer a ronda dos fóruns e tribunais, sina dos estagiários da época. Regressei ao escritório por volta das 17h. Percebi que todos me olhavam com indisfarçável apreensão. O instante cheirava a queimado. Finalmente, alguém tomou coragem e me disse: “Ligue para o trabalho do seu pai, parece ele não está bem”. Uma primeira frente fria percorreu minha espinha. Liguei… Do outro lado da linha, a voz chorosa da secretária foi direto ao ponto: “José Ruy, você precisa ser forte… Seu pai morreu…”.
Meu corpo inteiro formigou. Ao regressar do almoço que havíamos desmarcado, meu pai fora fulminado por um infarto agudo do miocárdio enquanto se preparava para escovar os dentes. Seus amigos o encontraram no chão frio do banheiro. Ainda tinha o tubinho de pasta numa das mãos.
Nunca mais fui o mesmo. Nada foi. Amargurei-me. Tomado por um certo senso de irrealidade, enveredei por um labirinto de rituais dolorosos. O encontro com minha mãe e meu irmão, destroçados. A primeira visão do corpo inerte. O velório avançando noite adentro. O invariável mantra, repetido por parentes e conhecidos que há muito não via. “Coragem! Agora você é o cabeça da família”. Que saco! Minha mãe, avisada da morte do marido na escola em que lecionava, nunca mais pisou na casa em que vivíamos. Não teve coragem. Encerrado o funeral, seguiu direto para a casa de uma de suas irmãs e por lá ficou. Nunca mais se casou ou namorou alguém. Tinha, também, então, 54 anos.
Minhas lágrimas, que pareciam ter secado, só começaram a verter alguns dias depois, quando fui ao trabalho de meu pai apanhar seus pertences. Sua pasta 007, já bem batidinha, um relógio de pulso quebrado e o tal tubinho de pasta, o último objeto a sentir o calor de seu corpo. Cada pertence era uma evidência silenciosa de sua humildade. Ironicamente, o primeiro caso de que cuidei como se já fosse um advogado foi o seu inventário.
O convite para que eu estagiasse naquele escritório, um dos mais conceituados do Brasil, estufara meu pai de orgulho. Foi então que me dei conta de quão relapso, negligente e mesquinho eu havia sido com ele. Embora já estagiasse há mais de dois anos naquele templo da advocacia empresarial, eu jamais, nem uma única vez, convidara-o para conhecer o escritório. Eu me envergonhava de sua figura. Por alguma razão, não conseguia enquadrá-la naquele ambiente chique. Eu era um imbecil. Um petulante. Ter me dado conta desse meu lado arrogante e sombrio fez com que me desmanchasse em lágrimas. Era o ar no vidro de mel. Era o coágulo se formando em minha alma.
Não deixe jamais que ele se forme na sua. Amor é o nome do jogo da paternidade. E respeito a sua regra de ouro.
*José Ruy Gandra, jornalista e palestrante, é autor do livro Coração de Pai – Histórias sobre a arte de criar filhos. Bem mais que isso, é pai de Paulo (in memoriam) e de Pedro e avô de Rodrigo (5 anos). Participou dos programas “Papo de Pai” e “Sogras”. Contato: jr.gandra@uol.com.br .
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