O outro lado do espelho: a revitimização pelo sistema de justiça

Mariana Kotscho Publicado em 28/12/2020, às 00h00 - Atualizado em 29/12/2020, às 11h22

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28 de dezembro de 2020


Artigo da promotora de justiça Celeste Leite dos Santos, que explica o Projeto de Lei de Estatuto da Vítima

Por Celeste Leite dos Santos*

O descrédito com o sistema de justiça tem se acentuado nas últimas décadas, colocando em risco a existência do próprio Estado Democrático. Expressões como “as leis são feitas para favorecer criminosos” ou “não vai dar nada” estão presentes no imaginário popular. Fatos são noticiados pela mídia que desencadeiam respostas quase que imediatas legislativas, movidas muito mais pelo que se convencionou denominar “populismo penal” do que verdadeira e própria política criminal preventiva. A espiral da violência permanece em ciclo contínuo em nossa sociedade, acentuando-se o discurso do ódio em todas as suas formas.

KUNZ destaca que do ponto de vista das representações sociais é necessário observar como as pessoas pensam e sistematizam sua vida cotidiana, com relação a Administração da Justiça. Para além da percepção de excesso de burocratização que por conseguinte acarretava sérios prejuízos a eficiência do sistema judicial, recentemente a própria austeridade do sistema judicial tem sido questionada nos meios sociais por meio de casos emblemáticos como o julgamento que revitimizou Mariana Ferrer, a importunação sexual da Deputada Isa Penna e recentes audiências judiciais na Vara de Família e Sucessões[1]. A retirada do manto da invisibilidade dos atos judiciais é uma conquista do regime democrático em um Estado que ainda se encontra em sua fase adulta inicial, com pouco mais de 32 anos. Inegável que, a imprensa reflete construções cognitivas dos membros da sociedade com relação ao sistema de justiça. Sobressai um sentimento de inação judicial frente ao avanço da criminalidade e desrespeito aos direitos humanos das vítimas, bem como o sentimento de que as leis existentes são inoperantes para combatê-las. A vitimização abrange aspectos distintos da estrutura social e é influenciada por fatores como a idade, orientação sexual, renda, reação da comunidade, desigualdade sexual e racial. A vitimidade antes naturalizada em uma sociedade orientada, não é mais aceita em uma sociedade do bem-estar social, reconhecendo-se a interdependência de todos os indivíduos como fenômeno imanente a sobrevivência do próprio ser humano.

Dessume-se desse breve introito que a sociedade pede ao Estado uma intervenção contundente e eficaz a fim de que cumpra sua parte no contrato social de conferir segurança a todos os cidadãos, independente de sexo, raça, orientação sexual, religião ou origem. A percepção de que para além de um Estado Social e Democrático de Direito a sociedade civil organizada no modelo de bem-estar social exige respostas diferenciadas atribuindo-se a vítima poder de fala em um espaço que lhe foi tolhido com a centralização do poder na forma de Estado, tal como concebida atualmente. Nessa perspectiva, a violência não afeta somente a vítima do delito, mas a todos os aspectos da vida em sociedade. Isso implica em como sentimos a segurança em nosso entorno, nossas expectativas em relação ao nosso crédito social com o Estado. O estudo da vitimização compreende o sentido lato da palavra vítima, tal como proposto por MENDELSHON, não se restringindo a mera prática de ilícito penal. BITTENCOURT destaca que vitimização é “a ação ou efeito de alguém, grupos ou nações vitimizarem-se e vitimarem pessoas, grupos ou povos”. Para o autor vítima é “aquele que sucumbe, ou que sofre as consequências de um ato, de um fato ou de um acidente”.

A revitimização ou vitimização secundária é entendida como a submissão a uma nova vitimização. Correspondem aos danos físicos, psíquicos, sociais e econômicos causados ao entrar em contato com os órgãos responsáveis pela saúde pública, persecução penal ou o Poder Judiciário. A vitimização pode ter por causa uma pandemia, desastres naturais, divórcio, perda de emprego, prática de crimes; podendo variar sua intensidade e duração de acordo com fatores temporais, espaciais e qualitativos. Na perspectiva temporal, deve-se ter em conta as revitimizações sofridas ao longo de sua existência. A revitimização qualitativa leva em consideração o número de vitimizações da mesma natureza e, na perspectiva espacial leva-se em consideração a multiplicidade vitimal em áreas de especial incidência criminal ou de saúde pública. Na sociedade do século XXI a prevenção a revitimização é apontada como eixo central de qualquer política criminal preventiva.

Dentro desse contexto, surge o Projeto de Lei de Estatuto da Vítima (Projeto n. 3.890/2020) de autoria do Deputado Rui Falcão, tendo sido criada Comissão Especial na Câmara dos Deputados para permitir amplo debate democrático sobre a matéria. O Projeto é fruto de Grupo de Trabalho coordenado por Celeste Leite dos Santos junto ao Projeto de Acolhimento de Vítimas, Análise e Resolução de Conflitos do Ministério Público do Estado de São Paulo em conjunto com representantes da OAB/SP, médicos, psicólogos, professores, religiosos e representantes da sociedade civil (www.avarc.com.br; www.higiamentesaudavel.com.br). Os projetos foram desenvolvidos a partir de uma concepção de Ministério Público em contínua articulação com a sociedade que representa, voltando sua atuação ao desenvolvimento de políticas criminais preventivas à vitimização como estratégia de obtenção de paz social. Isso perpassa pela escuta especializada de vítimas de crimes e da pandemia pelos promotores de justiça integrantes do projeto, acolhimento emocional voltado à gestão de crises, e o acolhimento espiritual por voluntários e religiosos do projeto. O Papo de Mãe é um dos parceiros do Projeto Higia Mente Saudável responsável pelo acolhimento de mais de 230.000 pessoas desde o início da crise causada pelo COVID-19.

O Projeto de Estatuto da Vítima visa incorporar a perspectiva da vítima em nosso ordenamento jurídico, possibilitando o desenvolvimento de políticas estratégicas de desvitimização. O estatuto visa conferir direitos materiais e processuais a vítimas de crimes, catástrofes naturais e pandemias, inovando ao prever ao lado dos conceitos de vítima direta e indireta a vítima coletiva, consoante o que segue:

Art. 1°. As disposições deste Estatuto aplicar-se-ão, às vítimas de crimes, desastres naturais e epidemias independentemente da sua nacionalidade e vulnerabilidade individual ou social.

Art 2°. Entende-se por vítima qualquer pessoa natural que tenha sofrido danos ou ferimentos em sua própria pessoa ou bens, especialmente lesões físicas ou psicológicas, danos emocionais ou danos econômicos causados diretamente pela prática de um crime ou calamidade pública. §1°. As disposições desta lei aplicam-se as vítimas indiretas, no caso de morte ou de desaparecimento diretamente causada por um crime ou calamidade pública, a menos que sejam os responsáveis pelos fatos, entendidas estas as pessoas que possuam relação de afeto ou parentesco até o terceiro grau, desde que convivam, estejam aos seus cuidados ou dependam desta.

Parágrafo único. Entende-se por vitimização coletiva as ofensas a saúde pública, meio ambiente, sentimento religioso, consumidor, fé pública e demais hipóteses que comprometam seriamente determinado grupo social, independente de sua localização geográfica.

O trato dispensado a vítima pelo sistema de justiça e de saúde pública também foi uma das preocupações centrais do estatuto ao prever medidas preventivas à vitimização secundária, por meio da capacitação contínua dos profissionais que tiverem contato com vítimas, a vedação a repetição injustificada de depoimentos, vedação a realização de perguntas de caráter vexatório de discriminatório, bem como o trato diferenciado às vítimas especialmente vulneráveis, como por exemplo, as vítimas de crimes sexuais, de preconceito de raça, cor, orientação sexual e outros coletivos vulneráveis (arts. 16 a 20).

O projeto também elimina o estabelecimento de prazos para o exercício de direitos pela vítima (prazos decadenciais), pois além do paradoxo de que a perda do direito de punir se dá sem que tenha havido inércia estatal, não são raros os casos em que as vítimas sequer atingiram no ciclo da vitimização consciência do delito que padeceram, fato muito comum nos crimes sexuais. Desse modo, os prazos decadenciais constituem violação aos direitos básicos da vítima como o de informação, comunicação, reparação do dano causado e restauração de sua dignidade.

O estatuto em comento visa incorporar conceito de vítima consentâneo com a vitimização histórica, coletiva e cultural presente nos dias atuais. Para além da vitimização direta e indireta propõe-se a integração da categoria da vitimização coletiva, ou seja, aquela decorrente da prática de crimes e calamidades públicas. O reconhecimento da vítima como sujeito de direitos fundamentais abrange o estabelecimento de um rol mínimo que atue de forma preventiva, especialmente a vitimização secundária, a saber:

Art. 4°. Para os fins desse estatuto são assegurados às vítimas o direito à comunicação, defesa, proteção, informação, apoio, assistência, a atenção, ao tratamento profissional, individualizado e não discriminatório desde o seu primeiro contato com profissionais da área da saúde, segurança pública e que exerçam funções essenciais de acesso à justiça, à colaboração com as autoridades policiais, Ministério Público e Poder Judiciário, sendo garantida sua efetiva participação e acompanhamento mesmo após a cessação do tratamento de saúde ou julgamento do processo criminal.

A conscientização de que todos os atores do sistema de justiça e de saúde devem atuar de forma colaborativa põe em evidência que a responsabilidade pela obtenção da justiça social não pode ser relegada apenas ao Poder Judiciário. Tal como os demais poderes o Poder Judiciário se submete a controle dos destinatários de sua atuação: a sociedade. Há, portanto, interesse público na manutenção do princípio constitucional da publicidade dos atos processuais previstos no art. 5°, LX da Constituição Federal e, qualquer tentativa de alteração legislativa desse princípio constitucional coloca em risco a legitimidade do Poder Judiciário e, por conseguinte, a permanência do Estado Democrático que se caracteriza pela existência de poderes independentes e harmônicos entre si. A Constituição, portanto, prioriza a transparência, o interesse coletivo e a informação.

O sistema de proteção à vítima tem por objetivos garantir a vida, a integridade física, a segurança, a liberdade e a indenidade sexual das vítimas e de seus familiares, e salvaguardar sua intimidade, dignidade e dos riscos da vitimização secundária ou reiterada.[2]

A proteção em sentido estrito se refere à proteção da vítima no, através[3], em respeito ou independente do processo penal. As medidas de proteção à vítima devem zelar para a desvitimização desde o primeiro contato dela com os órgãos de saúde pública, persecução penal e o Poder Judiciário.

A prevenção à vitimização demanda a adoção do modelo de bem-estar total, com comprometimento de todos as instâncias formais e informais de controle social. O desafio do século XXI é a integração dos saberes e dos indivíduos em um só corpo. A colaboração entre todos as instituições integrantes do sistema de justiça possui o condão de corrigir disfunções não previstas pelo Estado de Bem-Estar Social, mas que a sociedade brasileira ainda se encontra em estágio infantil de aprendizado. De forma oposta ao ativismo puramente judicial em que a atuação do Poder Judiciário atua sobre os demais poderes, o espaço extrajudicial de controle social com a articulação estratégica de setores da sociedade civil tem o condão de caminhar rumo a uma obtenção de justiça social, dentro dos parâmetros estabelecidos pela Constituição Democrática.

*Celeste Leite dos Santos, Promotora de Justiça Gestora do Projeto Avarc (Acolhimento de Vítimas, Análise e Resolução de Conflitos), Coordenadora do Grupo de Trabalho do Projeto de Lei de Estatuto da Vítima proposto pelo Deputado Rui Falcão (Projeto de Lei n. 3890/2020), Autora do Livro Injusto Penal e Os Direitos das Vítimas de Crimes. Curitiba: Juruá, 2020.

BIBLIOGRAFIA

BITTENCOURT, Edgard de Moura. Vítima. São Paulo: Editora Universitária de Direito Ltda, 1978.

BRASIL. Projeto de 3890/2020 – Institui o Estatuto da Vítima. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2258347. Acesso em 24.12.2020.

SANTOS, Celeste Leite dos. Injusto Penal e os Direitos das Vítimas de Crimes. Curitiba: Juruá, 2020. São Paulo. Editora Universitária de Direito Ltda, 1972.

KUNZ, Ana. Percepción social de la administración de la justicia. In: Documento de Trabajo, 2005, v. 132, p. 19. Disponível em: http://repositorio.ub.edu.ar/bitstream/handle/123456789/8269/132_kunz.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em 24. 12.202

[1]https://theintercept.com/2020/11/03/influencer-mariana-ferrer-estupro-culposo/; https://papodemae.uol.com.br/2020/12/17/nao-to-nem-ai-para-a-lei-maria-da-penha-ninguem-agride-ninguem-de-graca-diz-juiz-em-audiencia/; https://papodemae.uol.com.br/2020/12/22/da-para-adocao-disse-juiz-rodrigo-de-azevedo-costa-em-outra-audiencia/.

[2] Ibidem, p. 145.

[3] Diretiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de outubro de 2012 que estabelece normas mínimas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade; Ley 4/2015, de 27 de abril, del Estatuto de la víctima del delito (LEVD). Disponível em: https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-2015-4606. Acesso em: 15 set. 2019.

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