O pai que eu queria ser

Roberta Manreza Publicado em 13/08/2016, às 00h00 - Atualizado em 14/08/2016, às 08h41

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13 de agosto de 2016


Por Rodrigo Simon*

Tenho 41 anos e nunca tive filhos. Se tivesse, gostaria que fossem três.

A primogênita se chamaria Laura e teria hoje treze anos. Seria linda, realmente muito linda. Teria as sobrancelhas mais bonitas de todo o mundo. Mas o que mais chamaria a atenção de quem a conhecesse seria a educação e gentileza com que trataria todo mundo. E Laura seria muito estudiosa e responsável. Muito melhor aluna do que eu fui um dia.

A filha do meio se chamaria Isabel, teria 10 anos, e seria tão bonita quanto Laura. Bebel, como eu e todos a chamaríamos, seria um antídoto contra a mesmice e a chatice nas quais o mundo às vezes se transforma. O grande compromisso dela seria com a felicidade. Como no teatro, Bebel jogaria luz no que ela quisesse viver e sentir e deixaria lá no fundo, no escuro, o que não interessa. Bebel me lembraria o Seiscentos e sessenta e seis, de Mário Quintana. A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.Quando se vê, já são 6 horas: há tempo….Quando se vê, já é 6ª feira…Quando se vê, passaram 60 anos… Agora, é tarde demais para ser reprovado…E se me dessem – um dia – outra oportunidade, eu nem olhava o relógio. Seguia sempre, sempre em frente… E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.

O caçula se chamaria André. Ele teria hoje 9 anos. Manteria um lado criancinha só para fazer menos doloroso perceber que aquele menininho logo será um adolescente, depois um jovem e então um homem.  Ele conseguiria uma façanha que ninguém jamais conseguiu ou conseguirá. Só ele conseguiria me fazer torcer para o arquirrival Palmeiras. E só ele me faria passar horas na internet tentando aprender a montar um cubo mágico.

Eles ainda me fariam confessar que o que mais me encantaria seria o olhar de cada um dos três. Acho que a frase atribuída a Da Vinci faz todo sentido, os olhos parecem realmente ser a janela da alma. Talvez por isso Machado de Assis visse olhos de ressaca em Capitu e Camões olhos “fermosos” em seus sonetos.

André teria os olhos mais enigmáticos. É que, como na arte pós-moderna, a moldura faria parte da obra. De longe, seria um olhar úmido, que derrete; de perto, olhos vivos, faiscantes. Mostrariam que ele seria tudo ao mesmo tempo. André seria o sono que não chega jamais e o dormir sem nunca querer acordar; seria a voz que grita e exige e a fala que quase sussurra, tamanho carinho; André seria ainda tão miúdo mas já atleta; igualmente bom em futebol e matemática.

Laura teria o olhar mais doce e profundo do mundo. Não olhos que abarcam o ambiente todo, mas olhos agudos, que miram um objeto específico e o atravessam. Laura me lembraria Dante ao chegar à beira do rio Lete no Monte Purgatório. Coi piè ristretti e con li occhi passai. O pé detenho, e a vista se arremessa.

Já os olhos de Bebel seriam doces como os de Laura, mas fariam o movimento contrário. Os olhos de Laura atirariam em nossa direção; os de Bebel nos convocariam até eles; seriam uma armadilha, uma espiral; quando percebêssemos, estaríamos já lá dentro, capturados por eles. Ela usaria óculos não para corrigir a visão mas como uma barreira para que o mundo todo não se arrastasse para seus olhos.

Eu aprenderia muito com os três, todos os dias. Sobre mim mesmo e sobre tudo. Com eles, conseguiria ver um tantinho de como será o mundo daqui a pouco.  E pensando em Chico diria que apenas na soma do olhar dos três eu me conheceria inteiro.

Tenho 41 anos e nunca tive filhos. Mas se os tivesse gostaria que fossem Laura, Bebel e André, meus três enteados, de quem ouso me sentir um pouquinho pai neste domingo.

*Rodrigo Simon é jornalista, com passagem pelas redações da CBN, Bandnews e TV Cultura. Mestre em Letras pela USP, é doutorando em Teoria e História Literária pela Unicamp.

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