Roberta Manreza Publicado em 20/07/2016, às 00h00 - Atualizado às 07h54
Por José Ruy Gandra*, jornalista e escritor
Espelhos, ultimamente, têm me feito pensar um bocado. Há vezes em que observo neles o meu rosto e vejo, sob o véu de meus próprios traços, a figura de meu pai, morto há quase três décadas. Ali estão sua calvície, os fios nascentes da barba espessa e suas inseguranças diante da vida (que eu, tolamente, tanto menosprezei). Até aquela marquinha de catapora na testa carregamos praticamente no mesmo lugar.
Chega a assustar tanta semelhança, ainda mais tendo em vista sua morte prematura e a velocidade crescente com que me aproximo da idade com que ele partiu. Tinha 54 anos. Hoje eu tenho 48. Noutras vezes, felizmente, esse vidro na parede mostra-se bem mais generoso. O que vejo, nessas horas, são meus filhos. Nesses instantes de uma melancolia sublime posso identificar, com uma clareza desconcertante, pedaços de mim em Paulo e Pedro. A finura dos cabelos e as linhas retas do nariz de um; a mão delicada e o olhar castanho e tímido de outro.
É maravilhosamente complicada essa história de enxergar em mim o meu pai, e de vislumbrar em meus filhos o meu próprio retrato. Mas ela ilustra com perfeição meus grandes dilemas existenciais ao longo da vida – e as humildes lições que, com o passar do tempo, fui deles extraindo. Por mais que, na ocasião, eu tenha tentado aparentar calma e resignação, a verdade é que a morte de meu pai teve sobre mim e minha psique um efeito devastador. Por muito tempo encarei a vida com um fatalismo insolúvel. Por que planejar, perseguir metas e estabelecer relações duradouras se, em curto, médio ou longo prazo, estaremos todos à sombra de algum cipreste?
Esse meu medo do destino só começou a se dissipar quando tive meus filhos. Paulo, o mais velho, foi a primeira grande prova de que, seja lá como for, a vida continua. Ele ergueu-me da queda. Pedro, que chegou treze anos mais tarde, zerou meus temores – e adoçou de vez o que restava de minha amargura. Ambos contribuíram para que a lembrança de meu pai perdesse seu travo tão amargo. E ensinaram-me uma valiosa lição: só deixamos de ser filhos quando nos tornamos pais.
Tal constatação, hoje percebo, pôs fim à minha orfandade. Deu por encerrado o meu luto.
Minha sensação é a de que hoje encaro esse rio revolto chamado “vida” de modo mais simples e humilde – e, provavelmente por isso mesmo, bem mais profundo. É trágico? Sim! Mas igualmente maravilhoso. Imagine só: somos um feixe de moléculas que, por uma desprezível fração de tempo, reuniram-se numa combinação absolutamente única. Só existem duas coisas, em todo o universo, que se aproximam dessa receita: nossos filhos e nossos pais.
São minhas próprias moléculas (ou parte delas) que se agitam no espelho quando vejo o rosto de meu velho. São elas que me saúdam quando identifico algo meu na fisionomia ou no jeito de meus garotos. Na minha opinião, os filhos são o mais próximo que podemos chegar desse sonho fugaz a que chamamos de vida eterna. Criaturas nas quais investimos nossas vidas inteiras – na inconfessa esperança de que um dia, quem sabe, elas se olhem num espelho e vejam, sob seus próprios traços, um vestígio nosso a se insinuar.
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*José Ruy Gandra é pai, avô, jornalista, palestrante e autor do best seller “Coração de pai – Histórias sobre a arte de criar os filhos”. Participou dos programas “Papo de Pai” e “Sogras”. Contato: jr.gandra@uol.com.br