Série documental sobre palhaça negra, que será exibida a partir desta sexta-feira, traz o circo, questões de gênero e o apagamento de artistas negros
Sabrina Legramandi* Publicado em 15/07/2021, às 17h00
“‘Ninha, Ninha’. Era assim que minha mãe me chamava: e como eu gostava. Mas, quando eu estava lá no alto fazendo força de cabelo e ela no picadeiro, fazendo as palhaçadas do Xamego, eu não gostava dela não. Eram duas pessoas diferentes”.
Assim, Daise Gabriel começa a contar a história da sua mãe, Maria Eliza Alves dos Reis, ou, como era chamada no Circo Theatro Guarany, do palhaço Xamego. Eliza foi pioneira na palhaçaria feminina em uma época em que palhaços eram homens, pois, como diz Mariana Gabriel, diretora da série documental “Guarany, Histórias do Circo dos Pretos” e neta do palhaço Xamego, “esse lugar de palhaço é um lugar de poder e de poder ser”.
A história da primeira palhaça negra brasileira e também a de seu pai, João Alves, que, treze anos depois da abolição da escravatura, era um grande dono de circo, é pouco contada. Mariana, após começar a estudar palhaçaria, decide dar início a um projeto que chegaria à série documental, ao documentário “Minha avó era palhaço” e também a um livro, de 350 páginas, traçando os caminhos de seu bisavô.
“O circo é visto como uma arte ‘popular’, portanto, tida como menor. Na verdade, o circo é um lugar de acesso. Os espetáculos são ‘olho no olho’ e o artista está com o público diretamente.” (Mariana Gabriel)
Mariana decidiu construir a série segundo a vivência de Daise Gabriel, sua mãe e memória viva do Circo Theatro Guarany. Mas se engana quem pensa que Daise era apaixonada pelo palhaço que, nas suas palavras, “tirava a mãe dela”.
“Eu acho bonito porque ela retoma a infância nos seus depoimentos. Uma das primeiras coisas que eu perguntei para ela foi se ela gostava do palhaço Xamego. Ela fazia um bico gigante, dizia que ele tirava a mãe dela”, explica a diretora. Segundo ela, o mote da história é, justamente, Daise fazendo as pazes com o palhaço.
“A gente tenta trazer, com esse trabalho, o reconhecimento que a minha avó não teve ao longo da vida”, diz. Maria Eliza Alves dos Reis, hoje, tem o seu nome estampado em salas de universidades de artes e, até mesmo, em Centros Acadêmicos.
Há dois anos, uma exposição com os principais palhaços brasileiros trazia a história de 14 artistas e, dentre eles, uma mulher: a avó de Mariana. A cineasta conta que Daise ficou muito emocionada ao presenciar o momento. “Ela olhava tudo e falava: ‘sabe o que é? É que minha mãe queria tanto esse reconhecimento como artista”.
“Eu sou de uma época em que não tinha nenhum preto na tela, a minha referência de infância era a Xuxa”, conta Mariana ao falar sobre a importância de contar a história de mulheres pretas, como ela, sua mãe e sua avó são.
A diretora relata que, na maioria das 140 exibições do “Minha avó era palhaço”, muitos espectadores iam, emocionados, abraçá-la e dizer: “a sua avó se parece muito com a minha”.
“É como se a gente, enquanto povo, estivesse reconhecendo essa avó preta com orgulho. E, no meu caminho, eu quero estar onde todos possam estar e eu quero colocar pessoas pretas para que também se vejam.” (Mariana Gabriel)
Mariana conta que, depois de uma discussão após a exibição em uma escola no Capão Redondo, bairro da zona sul de São Paulo, as crianças, em sua maioria negras, se orgulhavam de serem quem são. “Elas batiam no peito e diziam ‘eu sou preta e minha mãe é preta’”.
Poder reacender essas histórias, para ela, vai além de dar a visibilidade que elas merecem: é também estar no lugar de reconhecer a verdadeira história brasileira e, no caso das crianças brancas, por exemplo, evitar que elas se tornem adultos racistas.
“Até quando vamos esconder que o nosso povo é indígena e preto? Vamos reconhecer, nos orgulhar e, principalmente, vamos saber dessas histórias por inteiro. Trazê-las e contá-las para as crianças é contribuir para esse imaginário que nos constitui enquanto nação brasileira.” (Mariana Gabriel)
A série documental “Guarany, Histórias do Circo dos Pretos” é fruto do 1º Edital de Apoio à Cultura Negra de São Paulo e será exibida integralmente a partir de amanhã (16) às 18h, no Facebook do Centro de Memória do Circo. Nas duas sexta-feiras seguintes, 23 e 30 de julho, a versão de uma hora e meia será novamente exibida às 18h e, no dia 2 de agosto, às 11h.
Será também possível assistir aos episódios separados e debater sobre cada um deles com a família Xamego nos seguintes dias:
19/7 - exibição de “A filha do Palhaço” às 16h
21/7 - exibição de “A vida na Cidade” às 11h
26/7 - exibição de “Nosso circo é um filme” às 16h
28/7 - exibição de “As pazes com Xamego” às 11h
*Sabrina Legramandi é repórter do Papo de Mãe
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