Roberta Manreza Publicado em 01/07/2016, às 00h00
Por José Ruy Gandra*, jornalista e escritor
Não chorei quando, após pouco mais de um ano juntos, crepitando na cama e nos estranhando em quase tudo fora dela, decidimos nos separar. Não nessa hora. Éramos, então, jovens e tolos demais para achar que um passo tão banal nos nocautearia. Por isso, presumo, aquele adeus nos pareceu tão simples e óbvio. Num sábado, após o café da manhã, estava tudo acertado. Negligentemente. Como quem apaga o derradeiro cigarro de um dia.
Na segunda-feira bem cedo o carro desceu de ré a ladeira da vilinha paulistana em que vivíamos. Ao volante, ela, seus cachos ruivos e rosto de menina, em cujos olhos pude ver, de relance, uma lágrima deslizando pela face. No banco de trás, alheio a tudo em sua cadeirinha, um bebê. Paulo. Nosso filho. Ao vê-los partir, pressenti turbulências. Mas eu estava exausto. Tomei um calmante e voltei a dormir.
Voltei a dormir, a comer bobagens, a beber até tarde, a juntar louça suja na pia e a vagar sem muito norte pelas noites e dias. A alegria duvidosa dos solteiros. Mas ficara um buraco. Cadê o meu menino? Uma estranha amargura roubava-me, a cada manhã, um pouquinho de ar. Um dia me asfixiou.
Pouco antes da Páscoa, a mãe de Paulo me ligou, dizendo que passariam o feriado na praia. A notícia me pegou de jeito. Meu primogênito veria o mar pela primeira vez e eu não estaria ali, para ajudá-lo a olhar. Meu menino, as ondas, baldinhos de plástico, esteiras e guarda-sóis na areia… A foto perfeita – e eu fora dela. Era o primeiro vagalhão do meu tsunami interior.
Por um bom tempo, comi o pão que o diabo amassou. É assustador como uma separação pode se parecer com a morte. Quando se tem filhos, essa sensação de perda se acentua. Em seu livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo, o escritor José Saramago fala de uma tal “dor sem remédio”.
Deve ser essa. Alguém morrera. Provavelmente o menino dentro de mim que, no fundo, sonhava ter uma família duradoura e feliz.
Duvido que meu casamento tivesse resistido. Mas me arrependo até hoje de ter tratado seu desfecho com desdém. Não dei ouvidos ao menino que pedia que eu lutasse mais. Como sofria com seu chorinho, sufoquei-o para abreviar minha aflição. Um comportamento tolo e pueril – que, à época, eu simplesmente não conseguia enxergar. Só depois, com as lições maravilhosamente simples que o tempo nos dá. Como esta: filhos são sagrados!
Graças a esse mesmo tempo, aquietei. E a vida acabou me brindando com um segundo casamento cuja doçura pretendo desfrutar pelo resto de meus dias. Paulo também sofreu. Bastante! Mas conseguiu sobreviver relativamente incólume aos fatos. Em suma: a vida foi em frente. Até hoje, porém, trago na alma uma pequena cicatriz. Aquele carro descendo a ladeira ainda dói. Ainda me pergunto o que ela, por detrás daquela lágrima, e ele, o pequenino, alheio a tudo em sua pureza, esperavam que fizesse aquele rapaz. Eu – que, minutos depois, tomaria um calmante. E voltaria a dormir.
–
*José Ruy Gandra é pai, avô, jornalista, palestrante e autor do best seller “Coração de pai – Histórias sobre a arte de criar os filhos”. Participou dos programas “Papo de Pai” e “Sogras”. Contato: jr.gandra@uol.com.br