“Oi filha, não sei direito se ainda vou te parir, porque tenho muito medo”

Oi filha, deixa a mãe te contar umas coisas. A verdade é que não sei direito se ainda vou te parir, porque tenho muito medo do que o mundo possa fazer com você. Do ano que eu escrevo, 2020, o Estado brasileiro pratica um genocídio contra o nosso povo, mas ontem eu vivi um dia histórico que talvez me dê esperança para que você venha participar desse plano terreno com a gente.

Roberta Manreza Publicado em 11/06/2020, às 00h00 - Atualizado às 11h59

-
11 de junho de 2020


Por Dra. Monique Prado*, advogada

Oi filha, deixa a mãe te contar umas coisas. A verdade é que não sei direito se ainda vou te parir, porque tenho muito medo do que o mundo possa fazer com você. Do ano que eu escrevo, 2020, o Estado brasileiro pratica um genocídio contra o nosso povo, mas ontem eu vivi um dia histórico que talvez me dê esperança para que você venha participar desse plano terreno com a gente.

É bom eu te contextualizar minha filha. 2020 tivemos uma pandemia global. Sim, foi algo nunca visto até aquele momento, pois a terra parou em pânico.

No Estado brasileiro, as práticas contra o combate ao coronavírus foram as piores possíveis e o nosso povo preto mais uma vez foi alvo da ausência de políticas públicas, pois as nossas vidas não importavam para eles. O presidente da época, um sujeito declaradamente fascista que aparelhava o Estado com militares para que ele pudesse instaurar de fato um estado totalitário, dizia ao ser perguntado pela imprensa que embora tivesse Messias no nome, “não fazia milagre” e que “E daí que iria morrer muita gente”.

Claro minha filha, essa “muita gente” da qual ele se referia incluía nós, negros e negras desse país que embora sejamos responsáveis por assentar toda a arquitetura, culinária, cultura e demais força de trabalho da base do país e que estávamos na linha de frente na pandemia com os “serviços essenciais”, fomos mais uma vez colocados à margem quando o assunto era a proteção de nossas vidas.

Filha, só que eles não sabiam. Já estávamos engolindo seco faz tempo, já estávamos com os nossos gritos desafinados e denunciando as atrocidades do Estado brasileiro há séculos, inclusive porque por aqui o Estado assassina crianças negras à base de fuzil minha filha. A mãe queria que fosse só uma metáfora para ilustrar as canalhices do governo, mas é tudo dado histórico filha.

Só que nesse mesmo 2020 em um cenário de pandemia, os EUA que historicamente também encarcera e aniquila o povo negro, foram responsáveis pela morte de George Floyd. Isso, assim como no caso de Pedro Gonzaga, garoto asxificiado no Supermercado Extra; Marielle Franco, vereadora assassinada no Rio de Janeiro; Agatha Felix, assassinada dentro de uma van escolar e João Pedro, assassinado dentro de casa, os jovens não aguentaram e foram às ruas.

Filha, repare que todos eles tem nome. Tinham família, tinham sonhos, mas o Estado até esse ano de 2020 tem um projeto vivo pautado na supremacia branca. George Floyd jogou fogo no palheiro e o efeito de seu assassinato “viralizou” não só nas redes como nas ruas. É filha, paradoxal ir às ruas em um cenário de pandemia. Mas nós fomos!

Vimos a Casa Grande cercada, sim a Casa Grande nesse caso era a Casa Branca americana. Vimos também a estátua de Edward Colston, escravagista inglês, sendo derrubada pelos manifestantes na Inglaterra. Filha, eram muitos países, até o Japão gritou “Black Lives Matter”. A mamãe tinha vontade de chorar ao ver o “efeito George Floyd” ocupando os jornais e as narrativas sobre o racismo pelo mundo.

Para nós, negros e negras que já eramos números maiores na letalidade pelo vírus e que sofremos não só com a violência policial, mas também com toda estrutura do racismo estrutural que propositalmente cria mecanismos para que a gente não prospere, não havia outra opção senão as ruas.

A branquitude americana e de países como França, Portugal, Canadá, Alemanha e Itália, sobretudo os milleniums foi massivamente às ruas ao lado dos negros. Mas aqui o movimento negro como sempre continuou carregando a pauta nas costas, pois os brancos preferiam colocar uma tela preta no instagram ou hashtag nas redes para não precisar rever os seus privilégios.

Filha, os brancos brasileiros – sobretudo os que pertencem à elite, são de uma hipocrisia que dá nojo. Para ilustrar, não estão presente nem em apoio a marcha das mulheres negras, nem nos eventos da agenda de novembro. Por isso, era de se imaginar que ficariam escondidos atrás de hashtag ecoando um silêncio ensurdecedor.

Olha filha, para não ser injusta, naquele 07/06 fui às ruas e vi muitos brancos finalmente gritando palavras de ordem antirracistas. Filha, eu espero que ao te contar essa história, seu cabelo, sua pele, seus trejeitos, suas expressões e seu jeito de ser não me preocupe a tal ponto de que eu tenha medo que você não volte para casa. Eu espero que mesmo dentro de casa, ninguém invada o nosso espaço a base de bala. Espero que daí do futuro você olhe para 2020 como um ano em que o mundo acordou para o que nós estávamos falando há séculos #vidasnegrasimportam #blm #blacklivesmatter.

*Dra. Monique Prado é advogada e integrante da Comissão de Direitos Humanos da OAB – Subseção Osasco. Participa do Comite de Igualdade Racial do Grupo Mulheres do Brasil e da Educafro.