Ao defender uma cliente que sofreu abuso, fui agredida nas redes

A advogada Mariana Serrano relata ao Papo de Mãe as agressões verbais que sofreu nas redes. Mensagens de cunho machista e ameaçadoras

Mariana Serrano* Publicado em 20/06/2022, às 09h15

As mensagens chegaram no celular da advogada -

Recentemente, uma cliente mencionou o nome do meu escritório em um artigo em que relatava a situação de violência sexual de que foi vítima. Em meio a parabenizá-la pela coragem e generosidade que teve ao dividir seu relato com o mundo, fui interrompida por um advogado desconhecido que se sentiu na liberdade de caçar meu contato na internet e enviar mensagens sobre o caso, acusando-me de não ter representado bem a minha cliente. Para facilitar a história, vamos chamá-lo de Dr. Macho Kado.

O detalhe importante aqui é que o processo está em segredo de justiça, ou seja, o Dr. Macho Kado não teve acesso a uma palavra sequer do meu trabalho. É dizer: sem nenhum subsídio para criticar-me senão o relato de uma cliente que não é da área jurídica, um advogado desconhecido, que mora em outro Estado (em que as práticas da advocacia criminal podem mudar) achou que seria uma boa ideia enviar-me mensagens no celular para ensinar-me a advogar, sem que nenhum conselho lhe tivesse sido solicitado. Ainda me pego pensando se teria sido melhor uma foto íntima não solicitada.

Obviamente, farei questão de reproduzir a conversa nos detalhes, pois a ousadia foi tamanha que a situação ficou cômica. Antes, porém, é preciso evidenciar que não se trata de uma inconveniência qualquer, mas de situação que representa uma parcela das violências diárias enfrentadas por advogadas feministas que defendem as vítimas e sobreviventes de violências decorrentes do gênero no Brasil.

Minhas clientes são vítimas de uma gama ampla de agressões: físicas, psicológicas, morais, sexuais, simbólicas, políticas etc.; todas elas embasadas na distribuição desigual de poder entre homens e mulheres na sociedade, no machismo, que busca a subjugação das mulheres. É isso que significa a violência decorrente do gênero.

Portanto, não tenho de dominar apenas o conhecimento jurídico e as estratégias para vencer as estruturas machistas que estão completamente absorvidas dentro do Direito (se é que não são fundantes do Direito), como também tenho que praticar o feminismo na advocacia, afinal, apenas conseguirei defender essas clientes a partir da validação de suas vivências, da prática de uma escuta qualificada, empática e técnica.

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Com certeza, a experiência que adquiri nos mais de 500 atendimentos a vítimas de violências decorrentes do gênero contribuiu bastante para formar esse conhecimento. E se tem algo que aprendi como advogada e sócia de um pequeno escritório de advocacia é que também sou interrompida. Também sou tida como exagerada, histérica. Também sou tratada de forma violenta quando luto contra a violência de gênero que estrutura a nossa sociedade. Divido com as minhas clientes o inconformismo pelas práticas desrespeitosas a que sou submetida enquanto advogada feminista.

Mesmo assim, sempre que possível incentivo minhas clientes a romperem com o silêncio e experimentarem o sentimento de contarem as suas histórias - ainda que, para tanto, tenham que anonimizar os sujeitos. Tem algo muito libertador em ser a dona de sua própria narrativa. Talvez por retirar-nos do local em que historicamente somos colocadas: o de repetir uma história única, como se fossemos exemplares de uma mesma coisa, de um mesmo fenômeno, da condição "mulher" e, a partir disso, perdêssemos o direito às particularidades que nos tornam humanas.

A verdade é que as vítimas são desumanizadas nas delegacias, nos órgãos do Poder Judiciário, no Poder Legislativo, na política, nos consultórios médicos, nos locais de trabalho e até mesmo em casa - onde os homens descansam e as mulheres temem. É recorrente que as mulheres sejam desacreditadas, quando não culpabilizadas e responsabilizadas pelas próprias violências que sofreram.

Existe algo de muito cruel nessa desqualificação da vítima, por isso que dominar a própria história é tão revigorante. E neste ponto retorno ao que aconteceu comigo. A cliente fez o seu relato, que foi publicado como artigo na Papo de Mãe e teve um alcance grande, foi um dos artigos mais acessados do dia.

Então, vibra o celular e vejo uma notificação de número desconhecido no WhatsApp. "Bom dia". Desbloqueei o celular, abri o aplicativo e foi aí que tudo começou.

As mensagens

Dr. Macho Kado: acompanhei um artigo no UOL, no qual o escritório de vcs foi citado.

Eu: Que legal! :)

Dr.: sim. Mas gostaria de pontuar algumas coisas, se não se importarem, claro.

Eu: Quem é você? Pontuar sobre o que?

Dr.: Meu nome é Macho Kado, sou advogado criminalista aqui no RS. Na verdade gostaria de expor minha visão sobre o conteúdo.

Eu: Macho Kado, se você quiser, pode entrar em contato com a produção das notícias e fazer um artigo sobre. Se for sobre o caso, conhecemos o processo e estamos 100% seguras de tudo que foi feito da nossa parte.

Dr.: Não entendi. Vcs estão recebendo críticas? A ideia é compartilhar conhecimento... não entendi o ódio.

Eu: Não tenho ódio, apenas sou assertiva.

Dr.: Minha ideia não seria dar feedback com qualquer pessoa física, pensei que estava falando com o escritório, com a PJ.

Eu: O senhor está 100% disponível para trazer sua opinião aos meios jornalísticos. A OAB nos veda de comentar sobre o caso, por ser segredo de justiça.

Dr.: Mas não se trata de comentar nada, nem eu nem vcs.

Eu: Então o senhor pode ser mais claro com o seu intuito?

Dr: No artigo vcs deveriam ter sido mais profissionais. MP não indicia ninguém, indiciamento é ato privativo do Delegado. Outro detalhe: A postura correta de vcs era oferecer "notitia criminis" por estupro e não por importunação sexual, primeiro por ser crime mais grave e segundo pq a importunação ainda não existia.

Eu: Então o senhor olhe a assinatura e veja que é um artigo escrito pela cliente não pelo escritório.

Dr.: Credo, se eu tenho uma cliente que eu, escritório não verifico antes o que ela faz...

E aceitem as críticas. Ninguém é dono da verdade :)

Aqui foi o meu limite. Embora ele tenha dito que só faria apontamentos se eu não me importasse, quando evidenciei que não estava disponível, ele não respeitou o limite. Apenas me restou bloqueá-lo no WhatsApp. Foi então que ele passou a contatar-me a partir de outro número de telefone.

Dr. Macho Kado: Para finalizar: Agradeço por terem permitido a intervenção. Farei um vídeo no YouTube sobre o tema. E principalmente para alertar que as vezes, quem prejudica não é o MP ou o judiciário, mas quem o cliente contrata. Att.

Eu: O Dr. não viu o processo, não sabe como foi feita a notitia criminis, a título de que, está sugerindo restringir como uma cliente comunica um sofrimento que ela vivenciou e ainda quer se alçar ao lugar de comentar casos de violência decorrente do gênero. Falta-lhe o que fazer? Comentar em público caso que não patrocina é infração ética Dr.

Dr.: DESAPAREÇAM DAQUI DO MEU WHATS.

Sim, pasmem, isso é real! E foi tão absurdo que decidi destrinchar as nuances da violência praticada.

Quem não trabalha com Direito pode não saber disso, mas existe uma certa etiqueta e respeito que deve permear a relação entre profissionais da advocacia, mesmo que estejam defendendo a parte contrária. É uma espécie de coleguismo, de respeito à trajetória da pessoa, um respeito à profissão. Infelizmente, essa cordialidade não se aplica em benefício das advogadas feministas e de pequenos escritórios que defendem as vítimas.

Ao ponto de um advogado de outro Estado sentir-se no direito de investigar meu escritório, descobrir quem eu sou, procurar meu número, para dizer que meu trabalho estaria incorreto, em relação a um processo que ele nunca viu, mas que, por ter sido cuidado por uma mulher, só poderia estar descuidado (spoiler: não estava). É inevitável questionar se o Dr. Macho Kado faria a mesma coisa caso eu fosse um homem, advogado de uma grande banca de advocacia. Para quem tem dúvida, a resposta é não.

É apenas pelo fato de ser uma mulher jovem e dona de um pequeno escritório que o Dr. Macho Kado sentiu a necessidade egóica e machista de tirar horas de seu dia para me dar uma lição. Para exercitar sua masculinidade tóxica, ser validado enquanto homem e advogado, já que era o meu escritório que estava sendo mencionado no artigo e não o dele.

Isso fica visível quando ele não aceita ser bloqueado e vem me procurar por outro número. É o clássico caso do homem que não aceita ser contrariado, vejo isso todos os dias na figura dos ex-maridos das minhas clientes, que não respeitam nem decisão judicial. Enfim, o Dr. Macho Kado não respeitou a minha imposição de limites em momento algum da conversa. Desde o início evidenciei que não estava disposta a discutir o caso.

No entanto, a minha vontade não era relevante para o Dr. Macho Kado, que insistiu. A inconveniência evidentemente não era uma preocupação dele naquele momento. Disse que eu estava agindo com ódio quando me impus, porque esperava submissão. Isso tem nome, é o "gaslighting", uma forma sutil de manipulação psicológica pela distorção da realidade, em favor dos interesses do manipulador. Neste raciocínio, não era ele que estava sendo inconveniente, nem eu que estava apenas sendo assertiva e impondo limites. Era uma manifestação de ódio. Afinal de contas, a raivosa nunca tem razão.  

O advogado também foi violento com a minha cliente ao sugerir que eu controlasse a sua narrativa, demonstrando desconhecimento sobre a dinâmica de cura em situações de violência decorrente do gênero.

Aliás, o Dr. Macho Kadu disse que faria um vídeo para falar sobre o assunto, para denunciar como as advogadas atrapalham suas clientes, reproduzindo a fórmula típica da masculinidade de extrema direita: publicar vídeos no YouTube, de forma sensacionalista, sobre algo que não aconteceu, para se estabelecer como o advogado que está expondo "a verdade desconhecida sobre a advocacia feminista" através da criação de factoides, já que na disputa de narrativas ele perde.

E quando apontei que ele estava errado, apresentando argumentos para tanto, o Dr. Macho Kado usou do recurso de escrever em caixa alta, que é sinônimo digital de estar gritando e, em seguida, me bloqueou. Totalmente histérico (risos). Como se não tivesse sido ele quem me procurou em dois números diferentes, apelando para a violência, como é de costume para homens que não sabem ouvir não.

O relevante aqui é destacar que este caso é apenas um exemplo bem completo de como funcionam as micro agressões que sofremos diariamente na advocacia feminista. Em outras palavras, é apenas mais um dia na vida da advogada que defende vítimas de violências decorrentes do gênero, na qual os advogados sentem-se no direito de rirem de nós e das nossas clientes em sala audiência, de nos ameaçarem e de tumultuarem nos processos para ganhar no grito.

Pois saibam, Dr. Macho Kado e colegas, que essa estratégia não está dando certo. Essas violências não vão passar em branco.

A advogada Mariana Serrano

*Mariana Serrano é advogada. Mestre em Direito pela PUC/SP. Coautora do livro "Vidas LGBTQIA+: reflexões para não sermos idiotas". Coordenadora do Núcleo de Diversidade e Inclusão no Trabalho da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/SP (2019 a 2021). Cofundadora e ex-diretora de atendimento a vítimas da Rede Feminista de Juristas - deFEMde (2016 a 2020). Sócia fundadora da Claro & Serrano Advocacia. Especialista na Advocacia para Famílias, Mulheres e População LGBTIA+ além de Direito Individual e Coletivo do Trabalho.

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