Lei de Alienação Parental precisa ser revogada; na disputa deflagrada por ela, somente o pai abusador ganha; mulheres e filhos sequer têm voz
Mariana Tripode* Publicado em 25/02/2021, às 00h00
Raiva, ressentimento, medo e muita mágoa. Em um processo de divórcio, sentimentos pouco nobres muitas vezes dão o tom das novas relações. O grau de fervura nessas horas já é alto, e a Lei de Alienação Parental (Lei 12.318/2010) só bota mais fogo na lenha. Pior, tem virado um “coringa” na manga para fundamentar e tipificar todo tipo de divergência entre pais e mães, com clara vantagem para a figura masculina.
Nesse jogo de poder, em meio ao litígio, quem dá as cartas são os homens. Juízes tendem a defender a priori a palavra e os interesses do pai, que usa a Lei, que está completando dez anos em vigor, para barganhar e impor acordos claramente desfavoráveis às ex-companheiras.
O objetivo inicial da lei seria impedir que um cônjuge sabote a relação do outro com os filhos, dificultando o contato da criança com o outro lado, mudando de endereço sem justificativa, ou apresentando falsa denúncia de abuso sexual da criança. Na verdade, ela tem sido instrumento útil para colar nas mulheres as pechas de alienadora e mentirosa, para questionar seus caráteres e, ao final, para culpabilizá-las e puni-las naquilo que elas têm de mais sagrado: a maternidade.
É assustadora a facilidade com que ainda hoje juízes rebaixam a mulher atribuindo a ela a figura de louca, histérica, vingativa e leviana. Fato é que circula uma compreensão preconceituosa de que a mãe que faz uma denúncia de abuso sexual do pai tem problemas mentais que a tornam, na verdade e a princípio, uma alienadora. Porém, acusar alguém de ter cometido crime sexual não é algo banal. Tampouco o é a alegação de que certa pessoa ou grupo de pessoas, aparentadas ao menor ou não, esteja “fazendo a cabeça” da criança contra o ex-cônjuge.
Esse é um dos maiores defeitos da LAP: partir de uma lógica patológica, maniqueísta, cuja figura da genitora “vingativa-mentirosa” acaba tendo mais apelo que sua alegação de violência e abuso sexual cometido pelo genitor, o “pai-injustiçado”.
E tudo desemboca numa ação judicializante que dá como solução simplista multas e medidas punitivas gravíssimas. Entretanto, essa visão turva e simplória da complexa situação pós-divórcio não atenua o sofrimento dos filhos, ao contrário, provavelmente o perpetua ao expor a criança a seus abusadores e ao promovê-la como objeto processual.
Por isso é imperativo que a LAP seja revogada. É preciso derrubá-la seja por meio da aprovação do Projeto de Lei 498/2018 pelo Congresso seja via provimento da Ação Direta de Inconstitucionalidade com pedido de Tutela Cautelar pelo Supremo Tribunal Federal (STF) à ação impetrada pela Associação de Advogadas pela Igualdade de Gênero (AAIG).
Está claro que crianças, mulheres e as próprias famílias são prejudicadas pela vigência da Lei, que dá ao juiz a prerrogativa de apontar sumariamente o dedo para uma das partes e estabelecer medidas punitivas independentemente de perícia. Hoje, ele pode enquadrar como alienadora qualquer conduta da mãe e aplicar sanções sem que haja previsão de prazo para resposta da parte contrária, que também não é notificada sobre o modo como o contraditório possa ser exercido, ainda que de forma postergada.
Elas passam a ser proibidas de ver os filhos ou têm acesso limitado a eles. Pior, as penalidades podem se tornar mais rígidas no futuro, uma vez que o PL 4.488 que tramita no Congresso desde fevereiro de 2016 propõe que a alienação parental passe a ser considerada crime se a denúncia de abuso sexual não for provada, com penas de prisão, para o denunciante, de três meses a três anos.
Mas como e por que, para denunciar o abuso, exigem-se previamente rigor e precisão, certeza absoluta mesmo, de uma mãe que vê seu filho como vítima? Por que pensar em punir posteriormente essa mesma mãe com a pena mais grave de separação do convívio dos filhos, sendo que os próprios peritos forenses têm imensas dificuldades de definir se houve crime ou não?
De fato, a mãe está com a espada na garganta, pois o suposto abusador tem para si uma tremenda vantagem diante do juízo: não é nem um pouco fácil obter provas nos casos de abuso sexual, que quase sempre ocorre entre quatro paredes. Em muitas vezes não há ferimentos e a denúncia acontece em geral muito tempo depois, o que impossibilita a coleta de material genético do agressor no corpo da vítima. Nesse quadro, com exames médicos e psicológicos inconclusivos em mãos, torna-se confortável ao juiz abraçar a tese de que as acusações são falsas. Pior: o jogo vira e a ausência de provas do abuso se transforma em prova de alienação parental.
A inversão de guarda patrocinada pela Lei é a expressão mais cruel da lei e tem sido rejeitada na maioria dos países. Não é possível acreditar que o Brasil possa aceitar manter essa legislação tão perversa que joga as crianças vítimas de abusos sexuais no colo de seus agressores.
Tal como está, a LAP desqualifica vergonhosamente a palavra da mulher e das crianças. Elas não têm voz. Na balança da justiça, o prato mais cheio é sempre o do pai. As iniciativas das mães de proteção contra supostos abusos cometidos por eles são revertidas sumariamente como ato de alienação parental, num perigoso cala-boca capaz de silenciar, estigmatizar e constranger acusações legítimas e desejáveis de violência em nome de uma ínfima minoria de casos de denúncias falsas.
Vale lembrar que “o fato de não se provar, em um processo criminal, o abuso sexual não significa que ele não tenha acontecido”, como bem descreveu a ex-juíza da Corte Constitucional portuguesa Maria Clara Sottomayor. Mesmo assim, após denunciarem ex-parceiros de abuso contra os filhos, se não provarem o crime, mulheres têm sido forçadas a engolir a guarda compartilhada ou até a perder o direito de conviver com as crianças.
Pela lógica, no mínimo a mesma postura implacável e rigorosa que exige das vítimas a materialidade de provas deveria ser assumida pelos tribunais em relação à veracidade da acusação de alienação parental oferecida pelo pai.
*Mariana Tripode é advogada formada pela UMC- Universidade de Mogi das Cruzes/SP. Especialista em Direito das Mulheres, Direito e Gênero pela Escola de Magistratura do Distrito Federal. É fundadora do primeiro escritório de advocacia para mulheres do DF e da Escola Brasileira de Direitos das Mulheres e foi presidente da Comissão da Mulher da ABA- Associação Brasileira de Advogados de Brasília.