O planejamento familiar é um direito da mulher e não ter este direito garantido é uma forma de violência
Fabíola Sucasas Negrão Covas e Sandra Krieger Gonçalves* Publicado em 27/08/2021, às 12h18
A notícia amplamente divulgada nos noticiários nacionais de que operadoras de planos de saúde passaram a exigir a autorização do cônjuge para a implantação do dispositivo intrauterino (DIU) em mulheres ensejou não apenas medidas de apuração promovidas pela Agência Nacional de Saúde (ANS), mas provocou a necessidade em debater a violência simbólica que atravessa a questão sob a perspectiva de gênero e que não se restringe ao parco fundamento do planejamento familiar.
Vale dizer, inicialmente, que a medida foi tomada em meio a pandemia do coronavírus, reconhecida pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD - de que não é apenas uma emergência em saúde, mas uma realidade que impacta o desenvolvimento humano de todos os aspectos, reservando, às mulheres – e como atentou a Organização das Nações Unidas – ONU e outras organizações de defesa dos direitos humanos como a Human Rights Watch já em março de 2020, impactos que vulnerabilizam os seus direitos sexuais e reprodutivos. Senão uma premonição, uma realidade concreta e simbólica. Afinal, e como bem atentou Simone de Beauvoir – um forte nome da segunda onda do movimento feminista -, “basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados”.
Não à toa, a decisão dos planos de saúde remete a práticas cunhadas de “violência simbólica”, por Bourdieu, tratando-se daquela que “se dá na criação contínua de crenças no processo de socialização, que leva o indivíduo a se posicionar no espaço social, seguindo os padrões e costumes do discurso. Devido a esse conhecimento do discurso dominante, a violência simbólica é manifestação desse conhecimento através do reconhecimento da legitimidade desse discurso dominante”.
Um discurso dominante que recai na ideia de que o destino da mulher é o casamento, a procriação e o cuidado com os filhos e o marido, nos ensinamentos de hooks[1] de que a maternidade é uma vocação da mulher e que as que não são mães estão condenadas a um destino de frustração no plano emocional[2], ou mesmo nas construções que recaem no que ZANELLO bem explica sobre a “culpa materna”, ou seja, de que elas se culpam também por não desejarem ser mães ou por se arrependerem de ter tido um filho.[3] Isso sem mencionar o espírito da tal “glorificação” que permeia a ideia de que ser mãe é mais importante do que ser pai, afastando-o de suas responsabilidades no cuidado com os filhos[4].
É evidente que o argumento de que o papel da mulher na procriação não deve ser causa de discriminação, da mesma forma no que diz respeito aos meandros que giram em torno dos direitos que ela tem de decidir livre e responsavelmente sobre ter filhos, o número e o intervalo entre os seus nascimentos. O direito ao reconhecimento, desfrute, exercício e proteção de todos os direitos humanos e liberdades permeiam os direitos das mulheres, incluindo-se neste compêndio o direito a autonomia e os direitos sexuais e reprodutivos, que, como direitos fundamentais, compõem o princípio da dignidade da pessoa humana.
O ser humano está composto de uma aura de interdição de violência (JOAS, 2012)[12]; não se trata apenas de uma questão de planejamento familiar, mas de uma questão que afeta a liberdade reprodutiva da mulher, protegida contra qualquer tipo de violência – sexual e institucional inclusive, de modo a concluir que a decisão de não ter filhos é individual, ao passo que a decisão de ter filhos, é do casal.
A conduta dos planos de saúde afronta inegavelmente a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – CEDAW, a Convenção de Belém do Pará, além da Constituição Federal, contrariando, inclusive, as metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU que tem como um dos fundamentos no relatório que a subsidiou a Plataforma de Ação de Pequim, que propõe, dentre outros, assegurar o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e os direitos reprodutivos às mulheres até 2030.
O livre planejamento familiar constitui um direito fundamental tendo por objetivo garantir muitos outros, como o direito à vida (da criança e da mãe) e a autonomia da vontade, mas deve ser interpretado à luz da base de nossa Constituição Federal, comprometida com a dignidade da pessoa humana e a antidiscriminação enquanto fundamentos da República, mas a antidiscriminação baseada em gênero.
Antes da segunda onda do movimento feminista, o problema da gravidez sem fim batia às portas da saúde, porém, enquanto às mulheres abastadas a crítica recaia na contenção do chamado “birth control”, cuja primeira clínica foi aberta em Amsterdã por Aletta Jacobs, paradoxalmente as políticas públicas davam ao governo o direito de esterilizar compulsoriamente pessoas, principalmente as mulheres negras, as mulheres e meninas pobres, as pessoas com deficiência mental, dentre outros.
Margarete Sanger, que popularizou o termo “birth control” chegou a ser punida por um tribunal em Nova Iorque porque suas ideias ocasionavam um “incômodo público”, afinal era época que não se separava sexo de procriação, muito menos se cogitava, às mulheres, o direito ao prazer.
A pílula foi uma criação revolucionária, garantindo maior liberdade às mulheres e a ocupação do espaço público, mas isto não quer dizer que se afastou a necessidade do planejamento familiar, afinal ainda se vivencia, na realidade brasileira, a maternidade precoce e o casamento infantil, os altos índices de gravidezes indesejadas, e a própria subnotificação do chamado “estupro marital”[5], uma prática tão naturalizada e decorrente da ideia do “debito conjugal”[6] em que mulheres e homens acreditavam que o casamento era um passe livre para o sexo, ainda que sem consentimento.
Aqui queremos reforçar para o fato de que o Brasil está comprometido com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU e o relatório que os fundamentou. Foi necessário enfatizar que os direitos de reprodução têm por base o reconhecimento do direito fundamental de todos os casais e INDIVÍDUOS a decidir livremente a respeito dessas questões, livres de coerção, discriminação e violência; que os direitos humanos das mulheres incluem os seus direitos a ter controle sobre as questões relativas à sua sexualidade, inclusive sua saúde sexual e reprodutiva; que a violência sexual baseada no gênero, inclusive os abusos físicos e psicológicos, expõem as meninas e mulheres a um alto risco de padecerem traumas físicos e mentais, assim como enfermidades e gravidez indesejável. Não por outro motivo, traz em suas metas garantir a saúde e bem-estar com enfoque de gênero, assegurar o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e os direitos reprodutivos, eliminar todas as práticas nocivas, como os casamentos prematuros, forçados e de crianças e mutilações genitais femininas; e de acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas em toda parte.
Finalizamos com os ensinamentos da revolucionária Margarete Sander, de que "a maternidade forçada é a negação mais completa do direito da mulher à vida e à liberdade".
[1]Aqui a referência se dá em letra minúscula propositadamente, tal qual a decisão da própria autora, cujo objetivo é o de manter as atenções sobre o conteúdo da obra, e não sobre ela. bell hooks é o pseudônimo de Gloria Jean Watkins, escritora norte-americana nascida em 25 de setembro de 1952, no Kentucky, EUA. Ela escolheu este apelido para assinar suas obras em homenagem aos sobrenomes da mãe e da avó. HOOKS, bell, 1952. Teoria Feminista. Da Margem ao centro / bell hooks; tradução Rainer Patriota. – São Paulo : Perspectiva, 2019 – (Palavras negras).
[2] ZANELLO, Valeska. in Dispositivo materno e processos de subjetivação: desafios para a Psicologia. Conselho Federal de Aborto e “Não Desejo de Maternidade(s): questões para a Psicologia / ZANELLO, Valeska; PORTO, Madge. Conselho Federal de Psicologia – Brasília: CFP, 2016. 178p.
[3] HOOKS, bell, 1952. Teoria Feminista. Da Margem ao centro / bell hooks; tradução Rainer Patriota. – São Paulo : Perspectiva, 2019 – (Palavras negras).
[4] JOAS, Hans. A Sacralidade da Pessoa: Nova Genealogia dos Direitos Humanos. São Paulo: Editora UNESP, 2012.
[5] Segundo a Nota Técnica “Estupro no Brasil”, IPEA, 2014, casos de estupro praticados por cônjuges acometeram: 9,39% mulheres adultas, 0,8% crianças e 1,2% adolescentes.
[6] COVAS, Fabíola Sucasas Negrão. A vida, a saúde e a segurança das mulheres: como entender a violência e saber se proteger/ coordenado por Rachel Polito, Fabi Saad. São Paulo: Benvirá 2021. ePUB – (Série – Mulheres fora de série)
*Fabíola Sucasas Negrão Covas é Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo. Membra Auxiliar do Conselho Nacional do Ministério Público junto a Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do CNMP. Mestranda em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Diretora do MPD – Movimento do Ministério Público Democrático. Palestrante TEDx.
*Sandra Krieger Gonçalves é Conselheira do Conselho Nacional do Ministério Público. Presidente da Comissão de Saúde do Conselho Nacional do Ministério Público. Advogada, Mestre e Doutora em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI