Quando devemos nos preocupar se a criança apresenta intolerância a determinados sons ou ruídos, chegando a tampar os ouvidos?
Tanit Ganz Sanchez* Publicado em 14/10/2021, às 07h00
Dizem que a vida imita a arte... Minhas duas filhas têm pai e mãe otorrinolaringologistas. Acredite se quiser: as duas tampavam os ouvidos com as mãos quando eram pequenas, em nítido sinal de incômodo e desconforto com alguns sons.
Como se não bastasse a “arte” de ser otorrino, uma das minhas linhas principais de pesquisa é justamente sobre hipersensibilidades auditivas, mas em adultos! Precisei fazer muita ginástica cerebral para compreender essa aula prática que acontecia bem diante dos meus olhos, tentando entender o que estava acontecendo para não errar (justo) com elas.
Crianças não são miniaturas de adultos, por isso os ouvidos delas não são como os nossos. Da vida intrauterina até os primeiros 3-4 anos de vida, o sistema auditivo está amadurecendo milhões (sem exagero) de conexões nervosas que vão conduzir os sons que entram pelos ouvidos até os neurônios de várias áreas cerebrais (da audição, das emoções, da atenção e da memória).
A grande questão é que essas conexões vão se moldando de acordo com as experiências auditivas individuais que cada criança se submete desde a formação do ouvido no 5º mês de gestação.
Estar em amadurecimento significa estar mais influenciável aos estímulos recebidos. Assim como a saúde geral é influenciada pelos alimentos ofertados aos nossos filhos, a saúde auditiva é influenciada pelos sons que nossa vida oferta, junto com as emoções atreladas a eles.
Quem nunca viu uma criança pequena chorar quando uma bexiga de ar estoura numa festinha ou quando os rojões e fogos de artifícios estouram no fim de ano? Essa criança pode carregar esse desconforto e reagir fortemente a novas exposições sonoras por muitos anos. Nada como a passagem do tempo para evidenciar - de uma forma que ninguém se atreve a contestar - os estragos que os novos hábitos vão causando. E nossos filhos estão mergulhados neles!
O que não falta na vida de hoje é som alto entrando pelos ouvidos dos nossos filhos: os fones de ouvido (que já são mais usados que algumas peças de roupa), o ruído das festinhas infantis, os gritos de algazarra no recreio, os apitos nas aulas de educação física, os shows e baladas sem uso de protetores auriculares, etc.
Mas a vida também trouxe o vilão invisível: enquanto os olhos fecham para se protegerem da luz, os ouvidos estão sempre abertos para os sons! Já pensou dessa maneira? Vamos juntas.
Que mãe nunca levou seu bebê para um social com outros adultos em um local com música alta (festa, carnaval, etc), ficou tranquila e aliviada porque ele estava dormindo como um anjinho, mas depois de chegar em casa, teve uma noite difícil porque a criança tinha ficado agitada aparentemente sem motivo?
Moral da estória: independente de nossos filhos estarem dormindo como anjinhos ou chorando assustados e irritados em um ambiente barulhento, os ouvidos deles sempre são alcançados (e às vezes bombardeados) pelos sons. E isso molda a experiência individual dos ouvidos de cada criança sem a gente saber.
Depois de dar essa volta para entender o que estava acontecendo com os ouvidos das minhas filhas na infância, passei a atender várias crianças e adolescentes que sofriam com hipersensibilidade (ou intolerância) aos sons do dia a dia. Até tivemos a oportunidade de publicar pesquisas científicas sobre esse tema (disponibilizei para você no final do texto).
Quanto mais eu ouvia no consultório sobre os problemas dessas crianças, mais eu entendia a reviravolta que isso pode causar na vida deles e da família.
Por isso, vamos às dicas para as mães reconhecerem o assunto na prática:
Por isso, a compreensão, o acolhimento do sofrimento dos filhos e a busca por ajuda bem direcionada são sempre os melhores caminhos.
Como a vida é cheia de sons, o buraco é ainda mais fundo. Nossos filhos que têm um desses dois tipos de hipersensibilidade auditiva (hiperacusia ou misofonia) podem também apresentar insônia na presença de sons na vizinhança, falta de concentração durante o dia nos estudos, fadiga crônica, irritabilidade e desmotivação para aprendizagem quando os colegas fazem barulho. Assim, tudo cresce em repercussão.
Tratamento precoce é um lema antigo da Medicina. Porém, as hipersensibilidades auditivas na infância e adolescência ainda são pouco conhecidas. Pediatras, hebiatras e otorrinolaringologistas raramente perguntam sobre isso nas consultas de rotina. Daí a importância dos pais reconhecerem melhor o quadro para introduzirem o assunto com mais propriedade com os médicos.
Eu aprendi com a história das minhas filhas que uma coisa é ter sintomas e tampar os ouvidos por causa do amadurecimento normal das vias auditivas das crianças até 3 ou 4 anos de idade. Outra coisa é a persistência dos sintomas além dessa idade, atrapalhando a vida familiar, social e educacional das crianças.
Mães, todas nós temos uma importância indiscutível sobre a saúde geral de nossos filhos, inclusive sobre a saúde auditiva. Acreditem na percepção de uma mãe médica que já ouviu e já se envolveu com a história triste de muitas famílias: cuidar da saúde auditiva das crianças também ajuda a manter a harmonia de relacionamentos dentro de nossos lares.
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*Dra. Tanit Ganz Sanchez: