Colocar limites não é uma tarefa confortável e acredito que este desconforto seja importante, pois nos faz pensar sobre como devemos agir em cada uma das situações
Ana Paula Yazbek* Publicado em 24/03/2021, às 00h00 - Atualizado às 12h17
Quando minha filha Marina estava com três anos, participei de uma reunião que tinha como pauta a colocação de limites às crianças. A ideia era que as famílias, em pequenos grupos, falassem sobre como lidavam com as recusas das crianças, as dificuldades em manter regras e combinados, assim como soluções que encontravam para contornar os humores e birras tão comuns nesta idade.
Lembro-me que uma mãe relatou que um dia entrou na sala e viu seu filho balançando uma árvore de fícus que tinha plantada num vaso e que ele sabia que era seu xodó. Antes de dar uma bronca, ela se aproximou e viu que o filho tinha colocado uns bichos de plástico nos galhos e estava criando uma brincadeira muito divertida, como se estivesse na selva. Para concluir seu relato, ela falou da importância de entender o que a criança estava fazendo, que o que para ela parecia uma provocação, ao se aproximar, viu que era uma saudável brincadeira.
Este relato deu o tom das conversas que se seguiram, da necessidade de buscarmos entender as motivações das crianças, ao invés de reagir prontamente, ou pré-julgar suas ações. Saí deste encontro bastante pensativa, pois por mais que concorde com isso, penso na importância dos adultos balizarem as ações das crianças.
Voltando à cena descrita, fosse por motivos destrutivos ou por motivações lúdicas, o menino estava mexendo numa planta de estimação de forma inapropriada, e isto poderia causar-lhe algum dano. Obviamente, não caberia uma bronca, mas alguma intervenção que impedisse que a planta estragasse. Talvez com isso, a criança se aborrecesse e não aceitasse continuar a brincadeira em outro local apropriado. Por outro lado, entraria em contato com um limite, uma regra básica de cuidado com as plantas e com o meio ambiente.
Colocar limite não é uma tarefa confortável e acredito que este desconforto seja importante, pois nos faz pensar sobre como devemos agir em cada uma das situações. Da mesma forma, receber um limite também não é confortável, mas é estruturante. As crianças desde pequenas precisam deste contorno para se organizarem, para explorarem e descobrirem possibilidades de ação sobre os objetos e o ambiente.
Deixá-las sempre livres para, em seus próprios tempos, perceberem e atuarem de forma adequada é uma visão um tanto romântica de criança, como se ela tivesse recursos próprios para criar e interiorizar regras. É papel da educação e, principalmente, dos adultos apresentarem as regras às crianças, balizar o que é adequado, o que é inadequado, assim como é papel do adulto suportar (tanto no sentido literal como para dar suporte/sustentação) que as crianças levam tempo para entender e aceitar as regras colocadas.
A psicanalista, Fraçoise Dolto, tem um livro chamado “Quando os filhos precisam dos pais”, no qual aborda temas recorrentes e desafiadores que pais e mães enfrentavam (e ainda enfrentam) na educação de seus(as) filhos(as). Ao longo dos capítulos, ela promove boas reflexões e indica caminhos sensíveis que ajudam na interlocução do que podemos fazer com as crianças.
Noto que muitas vezes, com receio de parecermos invasivos ou autoritários, nos esquivamos de colocar limites ou apontar algum comportamento inadequado. Sou extremamente favorável a buscarmos entender as motivações das crianças e sermos menos reativos quando notamos que uma criança está irritada ou “aprontando”, mas isso não é sinônimo de permissividade. As relações adulto/criança são assimétricas, e muitas vezes o adulto consegue antever que algo não dará certo. É de grande valia para as crianças quando os adultos traduzem o que elas não conseguem entender. De acordo com Piaget, as crianças são heterônomas, ou seja, as regras para elas partem do outro, sempre existiram ou possuem um caráter sagrado. Somente a partir de experiências relacionadas a prática e consciência das regras, e com o desenvolvimento de capacidades cognitivas abstratas que levem ao pensamento hipotético e dedutivo, as crianças se tornam autônomas.
Essa autonomia moral é a chave para a construção de vínculos afetivos e do entendimento que toda regra é uma convenção social e está situada numa relação circunscrita e circunstancial. Piaget chama a atenção para alguns estágios nesta construção, assim como nos tipos de sanções aplicadas quando há transgressões. Sim, as transgressões fazem parte dos limites, assim como as contrariedades. Quando uma criança transgride uma norma e recebe uma sanção, ela pode ser tratada com reciprocidade ou com mera punição. Quando a reciprocidade entra em cena, a criança é convocada a entender a lógica da consequência de suas ações (quebrou a planta, terá que acompanhar a sua restauração, cuidar dela em determinados horários). Quando a punição é que comanda, a criança é submetida a consequências aleatórias (quebrou a planta, ficará sem sorvete, sem tv, sem tela). Como resultado desta ação, tende a ter com as regras uma relação de maior distanciamento e obediência perante o receio de castigo.
A ideia de um limite inexplicável ou ameaçador não colabora para o desenvolvimento da moralidade, assim como a tentativa de não frustrar, interferir ou incomodar, deixa um limite invisível que pode trazer um grande desconforto para a criança e para quem com ela convive.
*Ana Paula Yazbek é pedagoga formada pela Faculdade de Educação da USP, com especialização em Educação de Crianças de zero a três anos pelo Instituto Singularidades; iniciou mestrado na FEUSP em 2018 e está pesquisando sobre o papel da educadora de bebês e crianças bem pequenas.
É sócia-diretora do espaço ekoa, escola que atende crianças de toda Educação Infantil (dos 0 aos 5 anos e onze meses). Além de acompanhar o trabalho das educadoras, atua em cursos de formação de professores desde 1995 e desde 2002 está voltada exclusivamente aos estudos desta faixa etária.
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