Em duas novas audiências on-line recebidas pelo Papo de Mãe, o juiz Rodrigo de Azevedo Costa, que desdenhou da Lei Maria da Penha, segue a mesma conduta misógina e machista
Mariana Kotscho* Publicado em 22/12/2020, às 00h00 - Atualizado em 15/01/2021, às 11h49
“A senhora escolheu um mau pai, a senhora escolheu um cara sem dinheiro. Azar é o seu” – audiência de B. “Se ele é mau pai, eu não tenho culpa. Eu vou fazer o que? Vou pegar este negão e encher ele de tapa? Não é meu trabalho este.” – audiência de B. “Quisesse, minha senhora, ganhar dinheiro, não ia ser sendo juiz com esse salário pífio que eu recebo” – audiência de F.
Como durante a pandemia as audiências estão sendo on-line e gravadas, após reportagem em primeira mão do Papo de Mãe mostrando o juiz Rodrigo de Azevedo Costa afirmando em vídeo “não estar nem aí para a Lei Maria da Penha”, outras mulheres apareceram para contar que também foram humilhadas por ele. Todas as audiências são da Vara de Família da Nossa Senhora do Ó, zona noroeste de São Paulo.
B. é auxiliar de enfermagem, tem duas filhas pequenas e participou de audiência de conciliação de regulamentação de visitas no dia 10 de dezembro. Assim como *Joana, que aparece na nossa primeira reportagem do caso, B. foi chamada de “mãe” e “manhê” pelo juiz, se sentiu ofendida em diversos momentos e mal teve a chance de falar. Sempre que ela tentava dizer algo, era interrompida.
Isso também aconteceu com F., numa audiência on-line de conciliação que tratava de partilha de bens no dia 11 de novembro (neste caso, não havia promotor). Foram duas horas de audiência. O juiz se mostra muito mais amigável com o advogado homem e o ex-marido do que com a advogada mulher e a mulher. Interrompe as mulheres várias vezes.
No caso de B., que não tem dinheiro para pagar advogados, estava na audiência uma defensora pública que quase não conseguiu falar. O juiz fez mais uma vez afirmações misóginas, machistas e, desta vez, também racistas (em relação ao ex-marido dela). O promotor do caso de B. é Edi Lago, que também esteve na audiência em que se falou sobre a Lei Maria da Penha. Ele mantém o mesmo procedimento nas duas sessões: fica praticamente calado o tempo todo.
A audiência foi pedida porque B. tem guarda compartilhada e precisava rever as visitas em razão da pandemia, já que as filhas não estão indo para a creche e, para poder trabalhar, ela precisava de uma participação maior do pai.
O juiz Rodrigo de Azevedo Campos mostra ainda preconceito pelo fato de B. ser pobre: “Ganha 1300 e quis ter 2 filhos?”. Ou “se não tem como cuidar, então dá para adoção, põe num abrigo”
Algumas frases ditas pelo juiz:
“Mas ela não quis a a guarda? Então, cabô. Ela quis a guarda e a guarda não é só bônus. E a senhora não ria de mim, a senhora tem que estudar muito para rir de mim”
“Esses dois vão ter que resolver entre si quem vai cuidar do filho. Ou senão dá pra adoção. Se não pode cuidar, põe num abrigo, sei lá, faz uma coisa assim”.
“Não dá pra B. chegar e falar “você tem obrigação de me ajudar”. Não, ele não tem.” (Detalhe : ele é o pai e a guarda é compartilhada)
“Você não quis a guarda, filha? Aceita o ônus dela. Quem tem que se virar para arrumar alguém é a senhora, não necessariamente ele.”
“Eu preciso saber quais dias o pai pode, ele tem um trabalho”
Juiz pede escala de serviço do pai e da mãe e diz: “Sem isso eu não tenho como decidir. Eu não tenho. Porque vai ser jogar o problema da mãe pro pai e isso eu não vou fazer. A mãe não tem com quem deixar. Pai também não tem. Mas quem quis ficar com a guarda foi a mãe, vai ter que pagar esse preço”.
“Tudo bem, o senhor tem que ficar 15 dias com a criança, vai lá e ela larga na porta da sua casa as crianças e o senhor tá no Rio Grande do Norte a trabalho, e aí, como é que a gente faz, mãe?
“Mas pera aí: a senhora ganha 1300 por mês e quis ter dois filhos?”
“A senhora é nova, é bonita, vai arrumar namorado que vai ficar na sua casa com eles (filhos) e o trouxão ainda pagando alimentos e, vacila, pagando mais alimentos ainda e tudo bem”. (observação: o juiz adota o mesmo padrão em outras audiências dizendo que a mulher vai arrumar outro homem e o pai vai ficar pagando pensão. Advogados explicam que a pensão é para as crianças, e independe de outro casamento da mãe)
“Quem tem que se virar com a guarda é a senhora, a guarda é sua”
“Aí, mãe, ele sai do trabalho e não tem alimentos. Ah, vou pedir prisão dele? Não, não vou dar, filha, ele saiu do emprego a pedido seu, inclusive, para ficar 15 dias porque ele não tem com quem deixar.
Veja o vídeo editado com trechos de diferentes momentos da audiência de B. A sessão durou uma hora.
O advogado Ariel de Castro Alves, especialista em direitos humanos pela PUC- SP e conselheiro do Condepe – Conselho Estadual de Direitos Humanos explica que “em regra, atualmente tem sido adotada a guarda compartilhada, a lei prevê esse tipo de guarda como prioritária, já que o poder familiar deve ser exercido em igualdade de condições por ambos os genitores” e ele completa: “Essas atitudes dele podem ser consideradas não condizentes com a dignidade da jurisdição. A corregedoria do TJ precisa apurar se ele infringiu o código de ética da magistratura.”
Neste outro caso, a tensão maior começa quando o juiz não entende algo que F. falou em relação aos filhos. Ela mencionou que o ex-marido só havia ficado com o bônus na separação e ela com o ônus. O juiz perguntou qual o ônus e ela mencionou dívidas e ficar com os filhos, mas ele não deixou ela terminar de explicar que o ônus não seria os filhos em si, mas as despesas deles:
Juiz: “Eu fico um pouco preocupado quando mãe diz que ficou com ônus de ficar com os filhos” (ela tenta argumentar sem sucesso) aí, mãe, não posso fazer nada”
Juiz: “Eu nao tô nem aí se a sua cliente ficou com o ônus, ficou com os filhos” (Ela não disse isso, excelência), “Eu não to nem aí se ele não visita”.
Várias vezes o juiz não deixava a advogada (também mulher) nem a mulher completarem uma frase inteira.
Juiz: “Eu tô sendo desacatado! Não ouvi a senhora falar desculpa. O que eu tô comentando aqui é uma falta técnica eu não tô defendendo marmanjo não, não sou advogado. A senhora tá me ofendendo, eu não tô batendo palma pra louco dançar. Ele tá muito bem patrocinado, a senhora acho que talvez (aqui ele está elogiando o advogado do homem e criticando a advogada da mulher) . Vocês pediram a porcaria da petição! (aqui ele bate a mão na mesa).
A advogada de F. disse ao papo de mãe: “Me senti nua naquela audiência. Nua e violada, moralmente falando.”
Ainda se dizendo muito ofendido, ele continua: “A senhora sabe o quanto eu estudei na minha vida, o que eu deixei passar na minha vida, pra nessa altura vir uma qualquer e falar que eu to defendendo parte? A senhora me ofendeu senhora. F. não se aguenta e responde: “Eu também não sou uma qualquer”. “Mas agiu como tal”, ele rebate. “Tá pensando o que, minha senhora? Posso te processar por isso!
“Desculpa”, diz F, já chorando muito.
O advogado do homem ri várias vezes e o juiz não faz nada. O juiz praticamente não se dirige com o ex-marido.
“Pra mim é indiferente, se eu decidir 10 sentenças ou 5 ou não fazer nada, meu salário é o mesmo”.
“Quisesse, minha senhora, ganhar dinheiro, não ia ser sendo juiz com esse salário pífio que eu recebo”. O UOL apurou que o salário bruto do juiz Rodrigo de Azevedo Campos é de R$32.004,65, conforme site do TJ-SP.
Rodrigo de Azevedo Costa parece gostar de dizer para as mulheres que elas vão arrumar outro homem e que o pai vai continuar pagando pensão. E deu o exemplo de outra audiência para deixar a mulher com medo: “Entenda, mãe. Outro dia falei numa audiência sobre isso, eu disse: Por que a senhora não transfere a guarda pra ele? Ah, não isso eu não quero (mãe teria respondido). Então, cala a boca!” (ele contando de outra audiência).
Veja o vídeo editado com trechos de diferentes momentos da audiência de F. A sessão durou duas horas.
No final da audiência, o juiz ainda diz: “Eu vou dizer mais uma coisa pra senhora: se a vida da senhora não tá boa ou a minha, da dra, do doutor, os únicos responsáveis somos nós. Tenha humildade de entender os porquês das coisas na sua vida.
Claudia Luna, presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB-SP
“Infelizmente isso não é exceção. Impossível não reconhecer que há misoginia, racismo, sexismo. Que há seletividade no sistema de justiça. O que as mulheres assistem, em todos os seus aspectos de interseccionalidade, nós assistimos isso. Tanto enquanto operadores do sistema de justiça, como enquanto partes. As advogadas sofrem violações nas suas prerrogativas profissionais ao terem um tratamento diferente em relação a advogados homens. E acontece mais ainda quando a profissional do direito é uma mulher negra. As violações de prerrogativas se colocam em relação às advogadas enquanto episódios de violência porque afetam gênero e quando afetam negras, para além disso, existe um componente de violência racial também.
São episódios de violência de gênero e configuram grave violação de direitos humanos. Existe uma recomendação da Convenção Internacional da ONU, da qual o Brasil é signatário, de que práticas como esta do juiz Rodrigo sejam eliminadas do sistema de justiça. São práticas de revitimização e estigmatização das mulheres, sejam elas partes ou integrantes do sistema de justiça. Isso é grave.
Essas práticas de reprodução do machismo acontecem por vezes de forma ainda mais perversa quando temos mulheres ocupando espaços de poder. Há mulheres que também reproduzem este comportamento.”
Vanessa Figueiredo Lima, advogada ativista, doutoranda ENSP/Fiocruz, membro da CDHAJ da OAB-RJ, do coletivo Coletes Rosas e da Rede de Apoio à População Periférica do RJ
“A partir dos trechos das audiências ficam claros os posicionamentos misóginos, elitistas e racistas do magistrado. Porém, não só pela questão humana e filosófica que erra o magistrado. Despreza o texto constitucional que já garante a isonomia entre os gêneros, ignora a regulamentação da guarda compartilhada. Desrespeita suas colegas defensoras e advogadas e esquece que o texto constitucional é expresso em determinar que não há hierarquia entre magistrado, promotores e advogados. Principalmente, ao humilhar as partes. Principalmente quando são mulheres. Demonstra não conhecer ou não se importar com o papel social de sua função. É inadmissível que a Vara de Família seja um lugar de produção de mais violência simbólica contra mulheres. No caso de B., ao mandar uma mãe zelosa (que apenas tenta fazer com que o pai de seu filho cumpra com seu papel) entregue o filho pra adoção, o juiz ignora a realidade das inúmeras crianças e adolescentes institucionalizadas e das famílias formadas pelo processo da adoção.”
Promotores ouvidos pelo Papo de Mãe explicaram que, quando a audiência envolve menores em vara de família, é necessária a presença do promotor, que deveria intervir quando o juiz se excede. O papel dele deveria ser verificar se a lei está sendo cumprida. Se o juiz começa a pressionar uma parte, seria papel do promotor intervir.
Em nota enviada ao Papo de Mãe, o promotor Edi Lago, que esteve presente das audiências de B. e de *Joana (do primeiro caso divulgado) informa o seguinte em relação à audiência em que o juiz falou sobre Maria da Penha:
“A atuação de membros do Ministério Público nas Varas da Família tem previsão legal. Ao contrário do que se supõe equivocadamente, houve sim manifestação do promotor na audiência, que resultou em acordo. Isso, evidentemente, com a anuência das advogadas, que tiveram ampla possibilidade de se manifestar e, inclusive, recusar o acordo. Vale ainda ressaltar que processos envolvendo direitos de crianças e adolescentes são protegidos por segredo de Justiça, nos termos da legislação, não cabendo nenhum outro comentário para se evitar a indevida quebra do sigilo”. ((Edi Lago, Promotor de Justiça))
Tribunal de Justiça de São Paulo
O TJ-SP informou em nota na semana passada que vai apurar a conduta do juiz Rodrigo de Azevedo Campos. O Tribunal entrou em recesso de fim de ano e só volta no dia 7 de janeiro.
O Juiz Rodrigo de Azevedo Costa não se manifestou.
CNJ – Conselho Nacional de Justiça
O CNJ divulgou a seguinte nota:
A Corregedoria Nacional de Justiça informa que, em 18 de dezembro de 2020, instaurou, por ocasião das representações subscritas pelas conselheiras do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Tânia Regina Silva Reckziegel, Flávia Pessoa e Maria Tereza Uille Gomes, a Reclamação Disciplinar nº 0010575-96.2020.2.00.0000 para apurar as circunstâncias em que ocorreu a audiência mencionada em reportagem do Portal Papo de Mãe. A Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo comunicou à Corregedoria Nacional de Justiça que instaurou procedimento para apurar os fatos noticiados.
Informamos ainda que a Corregedoria Nacional de Justiça não pode se pronunciar a respeito dos fatos, por força do disposto no art. 36, inciso III, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional.
Câmara dos Deputados
A Presidência da Comissão de direitos humanos e minorias da Câmara dos Deputados pediu, na tarde do dia 21 de dezembro, “apuração rigorosa sobre conduta do juiz Rodrigo de Azevedo Costa.”
Nota do Papo de Mãe
O Papo de Mãe informa que em sua primeira reportagem, em que revelou com exclusividade a má conduta do juiz Rodrigo de Azevedo Costa, o nome e a imagem dele não foram divulgados em respeito ao acordo feito com a fonte da matéria. Ou o vídeo era publicado sem identificação, ou não era. Nosso jornalismo não se calou e decidiu divulgar o fato, já sabendo, inclusive que a identidade dele já tinha sido revelada aos órgãos competentes – o que era importante.
A partir do momento em que a identidade do juiz já é pública, com esses novos vídeos, juiz e promotor são identificados. Porque mesmo sendo uma audiência em segredo de justiça, á permitido mostrar juiz e promotor. E porque as fontes autorizaram.
*Mariana Kotscho é jornalista e apresentadora
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