Especialistas e mães falam sobre a depressão materna, doença que tem sofrido um aumento de casos em meio à pandemia e às dificuldades financeiras
Sabrina Legramandi* Publicado em 27/04/2021, às 00h00 - Atualizado às 10h20
Enquanto dá seu relato por vídeo, Sandy da Cruz, 29, ajuda a filha, que, buscando imitar a mãe, está aprendendo a fazer um bolo. “Tenho uma mini confeiteira em casa”, afirma Sandy, sorrindo. Kênia Rocha, 42, prefere não aparecer no vídeo. Pelo som ao fundo, é possível perceber que seus filhos não param de brincar. Maria Helena, a mais velha, sente necessidade de sua ajuda e, ao final da entrevista, chega pedindo atenção.
Sandy é confeiteira e mora em Belford Roxo, município da Baixada Fluminense (RJ). Kênia é servidora pública e vive em Brasília. Apesar da distância, uma coisa, além do fato de serem mães, as une: o fato de ambas terem sofrido com a DPP (depressão pós-parto), que, segundo a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), atinge 26% das mulheres brasileiras.
De acordo com uma pesquisa do IPq (Instituto de Psiquiatria) do Hospital das Clínicas da USP (Universidade de São Paulo), divulgada no início de fevereiro, as mulheres foram as mais afetadas emocionalmente pelo contexto da Covid-19.
A resposta está atrelada, principalmente, a uma estrutura social muito antiga. Nas palavras de Fabíola Freire, coordenadora e professora do curso de Psicologia da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), “desempenhar o papel da mãe perfeita é coisa de super heroína ou de mulheres adoecidas”.
Quando começou a sentir os sintomas da DPP, em 2016, Kênia Rocha não se reconhecia mais. “Eu não sou uma pessoa que pede ajuda e essa foi uma das primeiras vezes na minha vida que eu pedi, lutei por ajuda”, relata.
A servidora pública mora no mesmo quintal que a mãe, mas, mesmo assim, enfrentou dificuldades para convencer ela e seu marido de que seus problemas eram reais. “Achavam que era frescura, preguiça de mudar, falta de Deus. Até eu estourar e dizer que eu não estava bem, que eu não era assim”, relata Kênia. “Então eles perceberam que era sério e passaram a me ajudar totalmente”.
Sandy da Cruz, pelo contrário, sempre viu a responsabilidade nas suas mãos. “Quando eu estava muito mal, meu marido chegava do trabalho e fazia coisas com as minhas filhas”. Porém, foi para criar as crianças que Sandy precisou deixar o seu trabalho, o que gerou uma piora do seu quadro.
“O lugar da mulher sempre foi estar a serviço dos interesses dos homens”, afirma Fabíola Freire em entrevista ao Papo de Mãe. A professora lembra que é essencial que haja uma revisão das funções tradicionais delegadas ao sexo masculino e ao sexo feminino, pois tais papéis apenas causam um adoecimento para ambos.
Para ela, enquanto o homem não procura ajuda profissional para não demonstrar fragilidade, a mulher é sempre culpabilizada. “Quando uma mulher se sente mal consigo mesma, ela ainda é chamada pelo marido de ‘estressada, irritada, histérica’, mas não é vista como sobrecarregada”.
Também ao Papo de Mãe, Hildete Pereira de Melo, economista, professora da UFF (Universidade Federal Fluminense) e autora de Mulheres e Poder: Histórias, Ideias e Indicadores (Editora Fgv; 2018), relaciona o papel de “cuidadoras da humanidade”, associado às mulheres, à dificuldade enfrentada por muitas delas em alcançar a independência financeira.
Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2019, 7% da população maior de 16 anos se declarava dona de casa. Ainda segundo o Instituto, 92,6% da população brasileira feminina realiza trabalhos ligados a afazeres domésticos e cuidados com as pessoas. Na visão da economista, a independência financeira é importante para a mulher “ser dona do seu próprio destino”.
Sandy planejou a gravidez de sua primeira filha, mas logo sofreu um choque de realidade: a pressão de ter que cuidar de uma criança e os hormônios do pós-parto se juntaram à obrigação de passar a trabalhar em casa e à preocupação com a sua renda e a de seu marido.
“Quando eu engravidei pela segunda vez, foi um susto e eu fiquei muito mal, mas continuei fazendo encomendas de bolo porque era dali que vinha o meu sustento”, conta. “Com certeza a questão financeira diz muito, porque, quando você está em depressão, sempre vem a pressão psicológica do futuro”.
A professora Fabíola Freire lembra que sempre há um aprendizado na relação entre a mãe e o bebê. “É muito comum essa sensação de incapacidade porque os desafios são enormes e os erros são inevitáveis”, afirma.
Porém, os desafios aumentam ainda mais em um contexto econômico desfavorável. De acordo com o IBGE, 57% das mães solo se encontram abaixo da linha da pobreza e, quando a mulher é preta ou parda, a porcentagem sobe para 64,4%.
Poucos são os estudos nacionais que relacionam a situação de vulnerabilidade social com a saúde mental. Nos Estados Unidos, um relatório da empresa Salary Finance, ligada ao setor financeiro, mostrou que pessoas constantemente preocupadas com a sua situação econômica são quatro vezes mais propensas a sofrer com depressão.
Na visão de Freire, a relação direta entre questões sociais e saúde mental é um dado inquestionável. “Como alguém pode se sentir bem, feliz ou uma mãe competente se só tem água para dar ao filho?”, ela diz.
No Brasil de 2021, o número de mulheres apenas com condições de dar somente água aos filhos só tende a crescer. E Hildete Pereira lembra que o mercado de trabalho feminino vem sofrendo um retrocesso imenso, causado pelo contexto da pandemia.
A economista afirma que, nos últimos vinte anos, cada vez mais mulheres passaram a fazer parte do mercado de trabalho, fato provocado pelo crescimento da taxa de educação feminina. Porém, desde o ano passado, a tendência mudou. “Cerca de 8 milhões de mulheres se retiraram do mercado trabalhista em 2020 e dificilmente conseguirão ser absorvidas após a pandemia”, menciona Hildete.
Mas não apenas o lugar das mulheres na busca por um emprego as coloca em uma posição desfavorável. A dupla jornada de trabalho, vivenciada por Sandy, Kênia e a maioria das mães, é um dos principais fatores que as fazem deixar ou, até mesmo, perder seus cargos.
“O trabalho não pago feito pelas mulheres é a raiz de toda a desigualdade”, diz Hildete Pereira. E por “trabalho não pago”, entende-se todo trabalho realizado e desvalorizado dentro de casa: limpar a casa, cuidar dos filhos, passar a roupa, etc.
Silvia Federici, uma das principais teóricas feministas contemporâneas e autora de O Calibã e a Bruxa (Editora Elefante; 2019), é a responsável por traduzir o conceito de “dupla jornada de trabalho” e também por defender que as tarefas realizadas dentro de casa devem ser remuneradas.
A ideia parece utópica, mas, de acordo com Pereira, o primeiro passo é a adoção da pesquisa de Uso do Tempo para contabilizar os afazeres e os cuidados domésticos. Segundo a pesquisadora, vizinhos latino-americanos, como Colômbia, Uruguai, Peru, Chile e Argentina, já contabilizam esse tempo de trabalho realizado pelas mulheres.
Dividir as tarefas realizadas dentro de casa também se mostra como uma solução para mulheres como Sandy, que teve de deixar seu emprego com a chegada das filhas. “Sem que os homens se revejam, não há como a mulher ter tempo para nada além das constantes tarefas que ela já não dá conta”, lembra Fabíola Freire.
Em agosto do ano passado, a UFMS (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul) realizou uma pesquisa sobre a saúde mental das mães durante a pandemia. No folder para a divulgação às participantes, as orientações eram:
● cuidar da alimentação com uma dieta balanceada e variada;
● reservar um tempo ao lazer e praticar atividades como meditação;
● utilizar telefone ou redes sociais para manter o contato social;
● dormir de 6 a 8 horas por noite;
● praticar atividades físicas;
● fazer psicoterapia.
Para Sandy e Kênia, a psicoterapia teve papel essencial em suas recuperações. Sandy, através do tratamento com o psicólogo, descobriu que era feliz participando de atividades na igreja. “Quando você consegue entender o motivo de estar aqui, você acha o remédio de tudo”.
Kênia encontrou o seu escape na psicoterapia e nos exercícios físicos – e estes últimos ainda fazem parte da sua rotina durante a pandemia. “Descobri nas atividades físicas um escape durante a pandemia, tanto que, se eu não faço, eu fico mal”, conta.
Para Fabíola Freire, a primeira coisa que uma mulher deve fazer quando começar a sentir os sintomas depressivos é procurar orientação psicológica. Porém, é fato que, para muitas mães, o tratamento não é acessível.
Sandy da Cruz chegou a tentar, sem sucesso, um atendimento pelo SUS (Sistema Único de Saúde), mas só conseguiu realmente conversar com um profissional através de um aplicativo que oferece uma rede de psicólogos. Se você está passando pela mesma dificuldade, o Mapa da Saúde Mental traz uma lista de serviços públicos, gratuitos e voluntários para quem precisa de ajuda.
Tão essencial quanto fazer o tratamento, é manter uma rede de apoio. Kênia Rocha diz que muitas mães encontram esse tipo de suporte em grupos no Facebook, como um do qual ela é administradora e Sandy participa.
“Uma coisa que aconteceu comigo depois que eu fui mãe é que eu comecei a ficar muito mais empática com as outras mulheres, principalmente as que são mães. Se você tiver se sentindo mal, fala com os outros, grita, pede ajuda, não fica calada, não sofre sozinha, vai atrás, não se culpa, tem muita culpa envolvida também. Tem cura, mas tem que buscar ajuda.” (Kênia Rocha)
*Sabrina Legramandi é estudante de jornalismo
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