No dia da Consciência Negra, a colunista Lígia Santos fala sobre a importância de combater o preconceito racial na área da saúde
Maria Cunha* Publicado em 20/11/2021, às 07h00
O dia da Consciência Negra é uma data marcada para lembrarmos das questões raciais e como é importante a luta contra a discriminação e o racismo. Ao Papo de Mãe, a colunista Dra. Ligia Santos, que é médica e negra comenta sobre a relevância de combater o preconceito racial na área da saúde.
“O racismo adoece, não só por conta das questões mentais, porque é muito complicado alguém sofrer uma violência e ficar sem sequelas ou marcas, mas imagine quando essa violência é sofrida desde o momento em que você nasce, diariamente, constantemente, isso é o que o racismo faz com as pessoas negras”, pontua a Dra. Ligia Santos
A médica que explica, mais especificamente, as pessoas mais escuras tendem a sofrer mais, porque elas tem na pele marcado um peso histórico do que significava ser escravo, ser negro em nosso país. Em razão disso, muitas vezes, são pessoas que são vistas com desconfiança, que não tem creditado mérito, que não tem oportunidades e que são desestimuladas a fazer determinadas coisas. Tudo isso em relação à questão da saúde mental.
Mas, pensando em questões de saúde em geral, a Dra. Ligia Santos explica que o racismo vai muito além, porque vivemos num país racista. Quando se fala isso, a médica conta que é muito comum causar estranhamento, já que algumas pessoas acham que dizer isso é um pouco exagerado. “A gente acaba vinculando o racismo ao Apartheid, às injúrias, às questões de indivíduo, mas é mais do que isso”.
No Brasil, assim como em outros lugares do mundo que também viveram períodos longos de escravidão africana, o racismo é estrutural, ou seja, é um sistema que foi construído para que uma parcela dapopulação, os negros, não tenha acesso, não tenha direitos e não consiga chegar ao mesmo lugar dos brancos.
A gente vê isso, no nosso país, na questão da saúde, por exemplo, quando a gente parar pra pensar no SUS. A pandemia da Covid foi excelente para mostrar o quanto o nosso SUS é importante, o quanto ele salvou vidas e determinou que coisas importantes chegassem, como a vacina, para todas as pessoas”, reflete a médica.
É importante dizer que 70% das pessoas que usam o SUS são negras e que, de acordo com a Dra. Ligia, se pararmos para ir em uma unidade de saúde, em um hospital público, como vemos em diversas situações, será possível perceber o quanto o mesmo SUS que ajuda tanto e que salva e transforma vidas, é sucateado, mal administrado e mal conduzido.“Isso é o que a gente fala que se trata de racismo estrutural, porque em um sistema tão importante, em que 70% dos seus usuários são negros, não há uma visão, um esforço pra que haja mudança”.
A Dra. Ligia Santos reforça que isso também acontece em muitos outros aspectos, entre eles, a forma como as escolas públicas são sucateadas, nas chances de trabalho, e ainda nas formas em que o sistema público acaba sendo cruel com as pessoas mais pobres, em sua maioria, negras.
“É importante que a gente, como sociedade, comece a pensar no racismo de uma forma diferente do ‘mano a mano’, da injúria, do xingamento. A gente precisa começar a pensar o racismo de uma forma mais ampla, porque o jeito que é construído o sistema do país, como as coisas são feitas, acaba fazendo com que parte da população continue ficando pra trás”.
A médica complementa ao lembrar que existem exceções e que terá um ou outro que conseguirá superar as dificuldades e barreiras, e que vai chegar lá. Apesar disso, a grande maioria tem tantas barreiras para superar que continuará muito atrás e não irá atingir os objetivos que deveria ou chegar no potencial que poderia se estivesse diante de políticas públicas claras, honestas e inclusivas, em que todos pudessem competir de forma igual.
“Combater o racismo é importante porque não se trata só de ajudar os negros, de fazer uma reparação histórica, mas de tornar a sociedade mais justa, menos desigual. Se eu faço com que o Sistema Único de Saúde atenda de maneira adequada, isso beneficia todo mundo. A escola, o transporte, as oportunidades de emprego, cursos da mesma forma”, explica a Dra. Ligia Santos.
A existência do racismo não é mais tolerável. Em pleno século XXI, com tanta diversidade, a gente ainda ter guetos em que muito poucos tem de tudo. A gente não pode esquecer que direito é de todos, enquanto privilégio é só de alguns. Então, se você ter um sistema de saúde que funcione, nesse país, infelizmente é um privilégio.
O racismo faz com que algumas doenças fiquem piores, pessoas negras tem mais pressão alta, mais diabetes, e isso não é só por conta da raça, mas também por causa das condições de vida. Quanto do sistema público é gasto com pessoas que infartam, que tem insuficiência cardíaca, que tem derrame, quando essas pessoas poderiam ser tratadas bem antes na Unidade Básica de Saúde, que em muitas regiões não funciona direito.
“É preciso combater o racismo para que as crianças cresçam melhor, para que a sífilis congênita seja combatido, assim como outras infecções durante a gestação de forma adequada, para mulheres grávidas não morram. Mulheres negras morrem muito mais do que mulheres brancas, isso também é racismo. Embora a gente saiba que mulheres negras tem mais chances de ter hipertensão, se eu já sei, por que eu vou deixar evoluir? Por que não intervir antes?”
Dra. Lígia Santos ainda questiona o porquê não há recursos para fazer com que certas crianças não cresçam órfãs, para que famílias não fiquem desestruturadas porque uma mulher jovem, e aparentemente saudável, faleceu.
“O racismo estrutural se embrenha na sociedade de uma forma sutil e vai fazendo com que as coisas acabem não funcionando de uma forma igualitária para todo mundo, fazendo com que algumas pessoas tenham muito mais chances do que outras. Precisamos combater o racismo, sim. Precisamos combater o racismo pra ontem. O racismo não é só lá fora, é aqui dentro, dentro da área de saúde, dentro da gente. Muitas vezes, a gente se perde nisso, esquece dosistema que permeia o nosso dia. Como disse Angela Davis, a gente precisa mais do que não ser racista, precisamos ser antirracistas. Na área da saúde, isso significa brigar por uma saúde pública que funcione pra todo mundo”.
*Maria Cunha é repórter do Papo de Mãe
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