Quatro mães, uma advogada e uma psicóloga falam sobre os desafios que cercam a maternidade de casais de mulheres
Sabrina Legramandi* Publicado em 30/07/2021, às 16h09
Uma mãe, um pai, um filho e um gato. Uma mãe, uma filha e um cachorro. Um avô e dois netos. Dois pais, um filho e dois peixes. São várias as configurações de família possíveis, como mostra também a atriz Nanda Costa. Duas mães e duas filhas: hoje com 6 meses de gestação, Nanda Costa anunciou que ela e a sua esposa, Lan Lanh, estão esperando a chegada de filhas gêmeas.
O anúncio, porém, chegou com uma onda de comentários homofóbicos nas redes sociais. Exibindo imagens de famílias formadas por duas mães, a atriz e a percursionista disseram: “nossas famílias existem”. Mas onde existem? Quem são essas famílias? O que elas vivem? Quais direitos estão garantidos para as duas mães?
Para responder a essas questões, o Papo de Mãe procurou famílias e trouxe os relatos de quatro mães: Carol e Simone, mães do Pedro, e Cláudia e Albertina, mães da Milena e da Bianca, mas que estão separadas há um ano e seis meses. Além disso, também conversamos com uma psicóloga para falar sobre os mitos e as verdades que cercam os casais homoparentais e com uma advogada, que trouxe um panorama sobre direitos.
Carol e Simone estão juntas há quinze anos e se conheceram em uma cena de filme: Carol filmando Simone em uma entrevista para um programa Queer (qualquer pessoa que não se sinta heterossexual). Depois daquele momento, as duas não se separaram mais.
Simone não teve dificuldades para inserir Carol em sua vida: ela já havia sido casada com outra mulher. Carol, porém, teve uma surpresa: em um primeiro momento, seu pai, Jair, aceitou a situação muito bem. Mas em uma comemoração de virada de ano, ele acordou no Rio de Janeiro e disse querer voltar para a sua casa, em São Paulo, pois não queria mais fazer parte da vida da filha.
Foram necessários quatro meses de conversas com pessoas “muito importantes na vida dele, como o frade dominicano, jornalista e escritor Frei Betto”, nas palavras de Carol, para que ele desse início à reconciliação e ao processo de se apaixonar por aquela que seria a sua futura “segunda filha”: a Simone.
Ele sempre falava para os amigos: a Simone é a minha filha, porque é a mais parecida comigo.” (Carol Campos)
Jair faleceu em 2012 e não conseguiu conhecer o seu neto, Pedro, que chegou após três tentativas de inseminação artificial em 2015. A conexão deles, porém, permanece nos trejeitos, nas palavras e na “mãozinha” de Pedro. “A Simone sempre brinca e diz que ele tem uma mãozinha de Jair”, conta Carol.
Pedro cresceu e começou a dar nome às suas duas mães: “grande” e “quininha”, o que seria inspiração, para Carol, para a escrita do livro “Duas Mamães”. “Eu sempre tive muito medo de ele me reconhecer como mãe, porque eu que engravidei e amamentei, mas, juntando as palavras, ele resolveu chamar a Simone de ‘mãe grande’ e eu de ‘mãe pequena’”, relata.
Os amiguinhos sempre entendem que Pedro tem duas mães e, algumas vezes, até perguntam aos pais o porquê deles não terem duas mães também, como conta Carol. O primeiro questionamento sobre o Pedro “não ter um pai” não veio dele, mas sim de seu colega de turma, Lucas.
“Eu expliquei para o Lucas que o Pedro tinha duas mães e a resposta que eu tive foi: ‘então eu já sei porque o Pedro não tem um pai: foi porque você queria mais menina do que menino na sua casa’”, diz. Carol acha importante a escola acolher a diversidade, pois, segundo ela, “é o primeiro passo para sair da sua bolha”.
A minha geração é uma geração que não via nem crianças negras em escola particular, por exemplo, e a gente tem que ter em mente que a criança precisa de amor e de carinho. Mãe pra mim é isso: seja uma ou seja duas.” (Carol Campos)
Há um ano e meio, Claudia e Albertina resolveram que estar juntas todos os dias não fazia mais sentido: decidiram se separar. O processo trouxe, para Milena e para Bianca, “duas casas mais calmas”, mas deixou algumas questões mais latentes. “Elas começaram a me questionar se eu namoraria homens agora”, conta Claudia.
Albertina e Claudia também relatam que as perguntas sobre a concepção das filhas também começaram a surgir após a separação. “Um dia marcamos um jantar e resolvemos explicar que tivemos um doador anônimo”, diz Albertina.
Claudia conta que não houve a curiosidade das meninas sobre saber quem ele é, mas que o caderno com todas essas informações ainda está guardado para o dia em que o questionamento surgir.
A separação ainda não foi formalizada, pois Claudia e Albertina sempre tiveram a preocupação com o bem-estar das meninas, mas o processo está em andamento. A guarda compartilhada já foi decidida: quinze dias com Claudia e quinze com Albertina.
A gente optou por criar uma convivência ok, pois sempre nos preocupamos com a felicidade da Milena e da Bianca.” (Claudia Crespin)
Algumas questões, porém, ainda são motivo de intrigas: e se uma das mães começa a se relacionar com outras pessoas?
“O lugar da verdade é sempre o melhor lugar”, afirma a psicóloga Ana Rosa Detilio quando questionada sobre a possibilidade de, em caso de separação, uma das mães começar a se relacionar com outras pessoas. Para ela, a questão, tanto para casais homoafetivos quanto para casais heteroafetivos, pode ser um grande dilema.
Ter diálogo e mostrar a realidade, porém, é a melhor forma de construir o respeito em todos os âmbitos da vida. É por isso que Ana traz alguns mitos sobre casais homoparentais:
1. “A figura paterna é necessária para o desenvolvimento da criança”:
A questão atinge não apenas casais homoparentais, mas também famílias formadas por mães solo, por exemplo. Ana explica que, do ponto de vista psicológico, o que importa é apenas a função materna e a função paterna, mas ambas podem ser desenvolvidas pela família através da dedicação e do envolvimento com a criança.
“O que a criança precisa é de figuras que cuidem, a amem e a respeitem como pessoa e que também favoreçam o seu desenvolvimento emocional”, afirma a psicóloga.
2. “Filhos de casais homoafetivos vão precisar de acompanhamento psicológico”
Ana Detilio explica que a necessidade de acompanhamento psicológico não depende do formato da família em que a criança se desenvolve, mas sim das demandas que ela apresenta ao longo da vida.
Porém, situações de preconceito ou de bullying podem ocorrer, especialmente na escola. Para tentar contornar isso, a psicóloga orienta que casais homoafetivos busquem colégios que contemplem a diversidade.
3. “Casais homoparentais irão gerar filhos homossexuais”
Ana afirma que não é problema algum se descobrir homossexual ao crescer, mas que famílias homoparentais não necessariamente irão ter filhos homossexuais. “Esse é um rótulo que, na verdade, foi construído por uma sociedade heteronormativa”, diz.
4. E se a criança perguntar “cadê o papai?”?
A psicóloga Ana diz que a solução, se esse momento acontecer, é que as mães estejam “muito bem organizadas emocionalmente com a história delas”, pois ela precisará ser narrada. “Se elas têm em mente que a família não vai ser constituída por um pai e sim por duas mães, elas conseguirão conversar sobre isso com os filhos”, afirma.
O mais importante, segundo a psicóloga, em relações entre pais e filhos, mães e filhos ou, até mesmo, amorosas, sejam elas homoafetivas ou heteroafetivas, é o diálogo.
O diálogo é sempre fundamental para a construção de qualquer relação. Uma relação familiar, seja ela qual for, é fundamentada no respeito e o respeito é fundamentado no diálogo.” (Ana Rosa Detilio)
Patrícia Gorish, advogada, professora e pesquisadora em direitos humanos para os LGBTQIA+ e os refugiados, explica que os direitos, para a Constituição Federal, estão garantidos e que há 10 anos o STF (Supremo Tribunal Federal) reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Para ela, porém, ainda não há o direito de andar de mão dada na rua com segurança.
No mapa de garantias de direitos, o Brasil está pintado de verde. Quando eu estudei sobre tudo isso, as pessoas viam o país como um exemplo na América Latina, mas casais homoafetivos ainda não podem andar de mãos dadas na rua.” (Patrícia Gorish)
Para ela, uma luta que também contou com os aliados da causa LGBTQIA+ trouxe resultados: “as pessoas começaram a entender que as pessoas homossexuais pagavam os mesmos impostos, mas tinham 87 direitos a menos”. Porém, a situação dos direitos dos casais homoafetivos é de instabilidade.
Sobre formar uma família, Gorish afirma que, para esses casais, o direito está “gourmetizado”. “Os casais homoafetivos conseguem ter filhos somente em clínicas que cobram de 30 a 40 mil na primeira tentativa, e nem sempre essa primeira tentativa dá certo”, explica.
Segundo a advogada, cerca de 70% dos casais formados por duas mulheres realizam a reprodução humana caseira (técnica que consiste em introduzir o sêmen, geralmente de um doador, no útero da mulher usando uma seringa ou um coletor menstrual, não regulamentada pela Justiça brasileira), o que causa problemas na hora de registrar a criança. “O juiz exige a documentação da clínica que, para a maioria dos brasileiros, é inacessível”, afirma Patrícia.
Além disso, a dificuldade de adoção no Brasil, segundo ela, atinge tanto casais homoafetivos quanto casais heteroafetivos. “Hoje o direito de ter uma família está sendo ceifado. Nos abrigos, temos crianças ‘invisíveis’, que nem sequer constam nos cadastros”, relata.
Somente em 2002 é que a lei reconheceu que famílias formadas por mães solo são famílias. A realidade no Brasil, se um pai ou uma mãe quer registrar o filho é essa: caso o registro for feito por um homem heterossexual, branco, de classe média, ele não é questionado. Registra-se e pronto.” (Patricia Gorish)
*Sabrina Legramandi é repórter do Papo de Mãe
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