Reality shows macabros: O Big Brother Brasil é muito mais fácil de engolir que a história do menino Henry, que a catástrofe de Saudades, que a morte prematura de Paulo Gustavo e os ataques homofóbicos, racistas e machistas que sofremos diariamente
Vinicius Campos* Publicado em 07/05/2021, às 00h00 - Atualizado às 10h26
Um vereador, que se autointitula cristão e defensor da família, mata Henry Borel de quatro anos na base da porrada. A mãe se diz vítima de violência do mesmo homem. Monique revela ter atuado com medo, sendo ameaçada pelo namorado. Estratégia? Verdade? Casos de violência contra a mulher mostram que as vítimas muitas vezes são incapazes de denunciar. Ficam em choque, em estado de pânico. Monique, depois de presa, troca de advogados e pede um novo depoimento. O delegado não aceita o pedido. A autoria do crime ainda será julgada, a condenação definida, mas a sociedade já julgou. Não perdoamos uma mãe que ignora o sofrimento de um filho, nem uma mãe violenta, que abandona, que assassina. É imperdoável. Mas será que se estivéssemos falando de um pai ausente, violento, assassino, ele seria tratado da mesma forma? Será que lhe dariam a oportunidade de mudar seu depoimento?
Saudades, interior de Santa Catarina. Um garoto de dezoito anos entra numa creche e, com um facão, mata uma professora de trinta anos, uma ajudante pedagógica de vinte e três bebês com menos de dois anos de idade. Dizem que o assassino, que ainda não terminou o ensino médio, é tímido, tem poucos amigos, e sofria bullying a ponto de querer abandonar a escola. Aparentemente tinha problemas em casa. Passava horas no videogame. Podia ser meu filho ou o seu. Depois do crime tentou se matar, não conseguiu. Está internado. O menino será julgado, certamente culpado. Terminará preso. O problema estará resolvido? A violência em forma de bullying, mais uma vez, será só um detalhe menor?
Paulo Gustavo. Comediante, pai de família, lutou contra o vírus com todas as ferramentas que pôde. Tanto as inerentes a qualquer ser humano, como aquelas que só os privilegiados temos. Bons médicos, hospitais, alimentação, acesso e informação. Tudo o que faltou para grande parte dos mais de 400 mil mortos. Nas redes sociais, declarações de amor e respeito. Ao mesmo tempo, comentários agressivos, violentos, desumanos. Alguns cristãos, pessoas de bem, dizem que ele mereceu a doença por ser viado, que se tratou de um castigo por ser livre para amar. No Brasil, todos os dias, um gay, sem privilégios, livre para amar, é assassinado simplesmente por existir.
Enquanto isso, no jogo que o brasileiro escolhe pra se distrair, ganhou Juliette: nordestina linda, branca, que fala bem, de cabelo alisado (ou aquelas madeixas “luxo” são naturais?). Chamativo, mas nada casual que a ganhadora seja a imagem que o Brasil quer ter de si próprio. Morenos, não negros. Simples, mas educados, com garra para lutar pelos sonhos, sem perder o bom-tom. Um povo de coração enorme, capaz de suportar as injustiças com um sorriso no rosto, porque no final da novela sempre chega a recompensa. Juliette é a prova. Ganhou um milhão e meio de reais, proposta pra gravar cd, carro, entrevistas, seguidores e é aplaudida por um país, onde mais da metade da população não sabe se terá comida para comer na hora do jantar. Mas a esperança não morre. Nunca! Talvez algum desses famintos, ano que vem, conquiste o grande prêmio e leve o país às lágrimas.
Já sei que o reality show é muito mais fácil de engolir que a história do menino Henry, que a catástrofe de Saudades, que a morte prematura de Paulo Gustavo e os ataques homofóbicos, racistas e machistas que sofremos diariamente; mas enquanto a gente continuar olhando pro lado, e não trabalhar pesado para que nossas filhas e filhos cresçam num ambiente de amor, sem bullying, sem violência, sem desamparo, sem armas; enquanto a gente não fizer uma verdadeira revolução, continuaremos vivendo num país triste que festeja nas telas os vencedores de uma competição macabra.
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