O filho de peixe e a identificação

O psicanalista Leandro Alves Rodrigues dos Santos fala sobre identificação, ou não, em família

Leandro Alves Rodrigues dos Santos* Publicado em 03/11/2021, às 08h52

Será que os filhos sempre imitam os pais? -

A expressão “Filho de peixe, peixinho é!”, tão popular em nosso país, é comumente utilizada quando um filho, de alguma maneira, faz algo que lembra os pais. Ou seja, ele é assim porque os filhos são sempre iguais aos pais e, desse modo, não deveria haver surpresas, portanto essa expressão seria conclusiva, encerrando a conversa.

Em termos, como diriam os psicanalistas, porque talvez seja interessante abrirmos um pouco essa prosa e, com base nas hipóteses de Freud, inventor da Psicanálise, percebermos que estaríamos tratando, sem saber, de um conceito muito importante no campo psicanalítico, chamado identificação. Indo direto ao ponto, o peixinho se identifica ao peixe, por isso acaba se tornando tão parecido!

E como isso se dá? Para Freud, a identificação seria um tipo de laço entre as pessoas, algo muito específico e, mais ainda, primitivo, ou seja, algo que se inicia na mais tenra infância, especialmente na família, onde meninos e meninas convivem com seus pais e suas mães, além de irmãos. De certa forma, alguém seria tomado como um modelo e, poderíamos dizer resumidamente, seria copiado como um ideal. A menina pode querer ser como a mãe, o menino como o pai, além de variações, como no caso de irmãos e avós, eventualmente. O que importa destacar aqui é que, identifico-me com o outro e quero ser como ele!

Assista ao Papo de Mãe sobre a influência dos pais na escolha profissional dos filhos

Como Freud não deixa nada ser tão simples, iniciemos com os desdobramentos desse fenômeno, pois posso querer ser igual ao meu pai ou a minha mãe, mas também posso querer ser exatamente o contrário, como aliás é muito comum notar isso no consultório de um psicanalista. Querer ter um casamento muito diferente da mãe sofredora, ser vitorioso e bem sucedido ao contrário do pai fracassado e perdedor, estudar muito para se diferenciar do irmão que nunca gostou de estudar, enfim, seriam muitas possibilidades que apenas comprovam o fenômeno da identificação. Ser ou dever ser o contrário de alguém não deixa de ser parametrizado justamente por essa figura, que foi tomada como ideal e, principalmente, captura o interesse da criança.

Outros desdobramentos podem advir do fenômeno da identificação, como por exemplo, poder (ou não poder) avançar para além de um irmão deficiente, ser um cidadão exageradamente cumpridor de regras em oposição a um pai irresponsável, fiel ao extremo tentando se diferenciar do pai traidor. Ou, ainda mais, não confiar em nenhum homem após assistir por anos a relação entre os pais, se exigir demais no trabalho para não ser insatisfeita como a mãe dona de casa, enfim, a experiência cotidiana confirma esses exemplos.

Estamos falando de processos inconscientes, daí a razão pela qual as pessoas que poderiam ser descritas nesses exemplos não se dão conta disso no dia a dia de suas vidas. E nesse ponto o tratamento psicanalítico pode incidir e operar transformações, afinal, um dos objetivos de uma análise é o que chamamos de queda das identificações, momento no qual devemos repensar nossas identificações e que com isso, afortunadamente, deixe de atravessar nossa existência.

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Durante os anos de minha prática clínica fico satisfeito de perceber que mulheres descobrem que não precisam sofrer como suas mães, podem escolher homens diferentes e estabelecer outras maneiras de amar, que podem exercer a maternidade de outra forma, podem se relacionar com o trabalho e a realização diferentemente de sua mãe, ou mesmo de uma suposta linhagem de mulheres de sua família.

E o mesmo vale para os homens, quando notam que um pai extremamente bem sucedido ou mesmo repetidamente fracassado não precisa ser necessariamente tomado como alvo de identificação ou qualquer outra forma de modelo. Que pode amar e conhecer mulheres por vias distintas e que pode, principalmente, ser um pai que exerça a paternidade de outra forma.

Finalizando, não importa tanto o filho do médico desejar ser médico também, mas que isso seja uma escolha única e muito íntima, para além da imitação, que seja fruto de uma decisão bem estabelecida, não fruto de uma cópia alienante que, cedo ou tarde, interroga quem assim procede, mesmo que seja inconsciente. Afinal, o peixinho pode ser um monte de coisas durante a vida!

Leandro Alves Rodrigues dos Santos

*Leandro Alves Rodrigues dos Santos - Psicanalista, doutor em psicologia clínica (USP) com pós-doutoramento em psicologia social pela PUC-SP. Autor de “A psicanálise no Brasil antes e depois de Lacan: posições do psicanalista nessa história” (Zagodoni, 2019)

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