O psicanalista Leandro Alves Rodrigues dos Santos faz uma análise sobre os estereótipos em torno do filho único, sempre "um criança mimada e egoísta"
Leandro Alves Rodrigues dos Santos* Publicado em 22/07/2021, às 14h31
Imaginemos uma criança em uma festa infantil, na escola, na casa dos coleguinhas ou em qualquer outra situação corriqueira interagindo com mais crianças, uma cena prosaica, não é verdade? Entretanto, se durante qualquer uma dessas situações, caso essa criança eventualmente faça ou diga algo fora do esperado e, com isso, chame a atenção dos adultos, é esperado que algum desses adultos intervenha, visando retomar a ordem das coisas.
Adultos dizem que as crianças devem saber várias coisas, tais como esperar sua vez, compartilhar com os coleguinhas, compreender o momento certo de falar, como pedir, suportar a frustração da contrariedade, enfim, peculiaridades do processo educativo, tanto no modelo mais formal da escola, bem como nas relações sociais. Bem, mas e a criança que não se encaixa nesses padrões definidos pelos adultos?
Além de criticada, a criança passa a ser sutilmente investigada por esses adultos envolvidos na situação. Nas hipóteses levantadas durante essa investigação, quase sempre se pergunta da mãe, as vezes do pai, muitas vezes do casal, até que num determinado momento alguém traz a informação conclusiva: essa criança é filho único! Geralmente a discussão se encerra nesse momento, pois essa constatação suspostamente explicaria por completo esse comportamento desviante dessa pobre criatura, afinal ela não tem culpa de ser filho único!
E isso nos leva a refletir sobre um fenômeno curioso, o filho único nunca é elogiado por isso, ou mesmo respeitado em suas eventuais virtudes. Não, o filho único é quase sempre portador de defeitos e extravagâncias, supostamente muito diferente da criança que tem irmãos. Se perguntarmos a uma pessoa como ela supõe que seja um filho único, sobre o que a faz pensar quando ouve essa expressão, é praticamente certo que ela dirá que é um ser mimado, que não sabe dividir, autocentrado demais ou mesmo egoísta, além de imputar outras particularidades específicas, tais como a solidão, tristeza, desamparo e afins, nunca algo positivo, como a percepção de que sejam, por exemplo, decididos frente a coisas da vida. Mesmo esse aspecto é distorcido, pois isso no fundo provavelmente seria apenas um disfarce de sua personalidade egocêntrica. Enfim, não há escapatória, pois o olhar endereçado para o filho único é quase sempre implacável.
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E aqui reside o ponto central deste artigo, afinal, estamos falando de um filho único ou de um estereótipo projetado nesse personagem? Vale ressaltar que o estereótipo, no fundo, serve apenas para tranquilizar e facilitar aquele que dele faz uso no cotidiano, até mesmo porque quando nos baseamos num estereótipo, nos poupamos do trabalho de conhecer o ser humano em questão, suas particularidades pessoais, sua singularidade e, claro, as riquezas que cada um pode apresentar, desde que tenhamos abertura para conhecer o outro num encontro autêntico, genuinamente interessado e, no fundo, acolhedor.
Acolher o outro significa compreendê-lo tanto nos aspectos que podem ser qualificados negativa ou positivamente, pois a premissa central que sustenta o estereótipo quase sempre é frágil. Apenas um exemplo bastaria: quando dizemos com o dedo em riste que tal filho único é impaciente e não sabe dividir nada com ninguém, talvez a boa pergunta que deveria ser feita é, isso se deve ao fato de que ela seja única ou, no fundo, toda e qualquer criança possa, cada qual a seu modo, resistir a dividir? A resposta é óbvia, depende da educação recebida, de algo da própria criança, dos exemplos recebidos dos adultos que a cercam e, por fim, é esperado que num certo período da infância a divisão seja difícil mesmo, basta perguntar para qualquer docente de educação infantil qual é a operação matemática mais difícil de ser aprendida, e aceita, pelos pequenos em qualquer escola.
Então ficam dois pesos e duas medidas, caso eu note uma criança saindo de um suposto prumo, primeiro investigo se é um filho único, caso seja, tudo está explicado e, em caso contrário, tenha um ou mais irmãos, a explicação será totalmente diferente, provavelmente mais razoável. Isso é o estereótipo em sua magnitude, mas vale pensar o quanto de injustiça pode estar presente nessa lógica que nem ao menos nos damos conta. Naturalmente isso poderia se aplicar também ao filho adotado, ao filho deficiente, a filhos gêmeos e, por incrível que pareça também, filhos mais velhos, do meio ou caçulas, tanto faz, o estereótipo sempre pode ser usado conforme a conveniência de quem o enuncia. Mas sempre é possível repensar essa atitude e, claro, termos um pouco mais de trabalho para conhecer o outro de boa vontade. No fundo, trata-se de uma questão ética e, no final, vale a pena...
*Leandro Alves Rodrigues dos Santos - Psicanalista, doutor em psicologia clínica (USP) com pós-doutoramento em psicologia social pela PUC-SP. Autor de “A psicanálise no Brasil antes e depois de Lacan: posições do psicanalista nessa história” (Zagodoni, 2019)