Uma crônica do psicanalista Paulo Bueno, um papo de pai
Paulo Bueno* Publicado em 06/09/2021, às 07h00
- Te amo filho.
- Eu também, responde ele com voz apática.
- Te amo mais que chocolate filho.
- Eu até te amo, mas é que eu gosto muuuuito de chocolate papai, mais do que de você.
Silêncio.
Talvez para me consolar, revelou que o chocolate não é, assim, tão importante e quebrou o gelo.
- Papai, papai.... sabe? Eu gosto mais de tablet do que de chocolate.
Não mais que de repente, de segundo da lista caí para terceiro.
Tem um filósofo que escreveu que a grande questão que define os termos das relações humanas é aquela que a pessoa tem de escolher entre “a liberdade ou a vida?”. Se tivesse chegado aos dias de hoje, esse filósofo teria que adicionar uma cláusula à sua questão. Em letras miúdas incluiria “caso abra mão da liberdade, não será permitido o uso de aparelhos eletrônicos”.
Veja bem, a privação de liberdade se torna menos penosa quando temos à disposição esses aparelhinhos. Sempre me pergunto sobre como se entretinham os confinados da Gripe de 1918. Não quero, com isso, passar a falsa impressão de que na atual pandemia seja fácil, apenas reconheço que facilita um bocado ter filmes, músicas livros, jogos e redes sociais ao alcance da mão.
Suponho que Pedro partilhe da mesma opinião. Já vem de uma geração que sabe que o potencial de entretenimento dos joguinhos é maior que o mais criativo dos adultos. Eu, adulto, lamento. Mas me esforço. Hoje mesmo, após ouvir que ele prezava mais pelo dispositivo eletrônico do que por mim, resolvi levar a rivalidade que travo com o tablet até as últimas consequências.
- E se tivesse caindo de um prédio eu e o tablet, quem você salvaria?
Percebi que ele nem precisou pensar para responder, o que me deu esperanças.
- Eu pegalia meu tablet e chamalia alguém pla te salvar....é poique eu não te aguento, você é muito pesado.
Silenciosamente refletimos – eu com o orgulho ferido, ele plácido.
Já não concordava com o filósofo, agora me distanciei mais ainda de suas conclusões. A pergunta fundamental é “o pai ou o tablet?”. Ela define os termos da relação. O chocolate, obviamente, fica de fora, é amplamente difundida a ideia de que não há maior metafísica no mundo do que comer chocolate, se lambuzar sem se dar conta que a embalagem é feita de estanho ou qualquer outro material biodegradável. Come chocolates, pequeno sujo! E depois me responda a pergunta “o pai ou o tablet?”. Antes que eu prosseguisse com minha filosofia, o menino suplementou sua resposta.
- Papai, como eu não te aguento, eu jogalia uma coisa no chão pla você cair no macio...um tlavesseilo.
Com esse afago de palavras e plumas, cresceu a vontade de libertá-lo das expectativas e demandas paternas. Mas essa escolha é um gesto que ele terá que fazer por conta própria.
*Paulo Bueno: Pai do Pedro, de 5 anos. Psicanalista, mestre e doutor em Psicologia Social pela PUC-SP e docente do Instituto Gerar Psicanálise, Perinatalidade & Parentalidade.
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