A pandemia aflorou nossos medos, nossas fobias. E tem a turma que parece nada temer, mas que impõe também o medo. Uma crônica do psicanalista Paulo Bueno, pai do Pedro, que com a paternidade ganhou outros medos
Paulo Bueno Publicado em 04/05/2021, às 00h00
Mas esse é um medo infantil, medo bobo. A gente cresce e passa a se preocupar com outros temores, como a violência urbana. Não era o meu caso, até Pedro nascer.
Tempos difíceis. Sair de casa, encontrar os amigos, tomar a condução, fazer compras no mercado, mandar o filho para a escola e até mesmo trabalhar é motivo de temor. O medo atmosférico, entretanto, não tem primazia na lista das principais fobias, vide essa turma que anda com a máscara ora no nariz, ora no bolso. Claustrofobia, agorafobia, nictofobia, aracnofobia e oftalofobia são muito mais comuns.
Seria um grande exagero chamar de blatofobia a relação que tenho com as baratas. Prefiro dizer que tenho um baixíssimo apreço por elas, o que certamente tem mais exatidão. Sou do tipo que não se aproxima quando topa com uma, mas que também não corre (com exceção das que voam, obviamente). Talvez essa explicação não seja suficiente para expressar a natureza de nossa relação. Pronto! Para que se possa ter uma medida da distância que busco estabelecer com elas, aqui vai uma informação elucidativa: logo nos primeiros capítulos abandonei “A paixão segundo G.H.” de Clarice.
Por um afortunado acaso, onde moramos elas são raras. Eu mesmo, vi no máximo cinco na última década. Em consequência disso, Pedro, menino de cidade, não teve muitas oportunidades de conhecê-las. O grande encontro aconteceu apenas aos três anos, quando gritou surpreso e excitado, de lá do corredor, “papai, você vai ter que pegá a raquete pla gente matar o maior peinilongo do univéiso”. Ri e ri muito, principalmente após ter vencido a peleja contra minha adversária, que, por sorte, não voava. Ao Pedro, tadinho, faltavam referências fidedignas. De fato, aquele “pernilongo gigante” em nada se assemelhava à simpática barata que aparece nos vídeos da Galinha Pintadinha com sua saia de filó, anel de formatura e sapato aveludado.
Mas esse é um medo infantil, medo bobo. A gente cresce e passa a se preocupar com outros temores, como a violência urbana. Não era o meu caso, até Pedro nascer. A mudança das lentes através das quais enxergávamos tudo é imediata, vem com o primeiro choro do bebê. Acidentes, furtos, assaltos e todos os outros riscos são acentuados pelos óculos fóbicos da paternidade.
Já saí do Hospital com o pensamento “agora teremos que manter esse recém-nascido vivo, higienizado e alimentado”. Quis o destino que obtivéssemos logro nessa tarefa. Contudo houve sustos. Um deles foi quando furtaram meu carro. Não havia ninguém no veículo, o que não me livrou dos efeitos da cena dos cacos de vidro estilhaçado sobre seu bebê-conforto. Cena traumática.
Talvez esse seja um dos motivos pelos quais seu tablet nunca havia saído de casa. Entretanto, a exceção – essa insuportável – é persistente em sua função de confirmar a regra. Por isso, no dia da exceção, tive que explicar que não poderia usar o aparelho enquanto estivesse no carro, apenas quando chegássemos em meu trabalho.
Difícil pergunta, como falar a uma criança de quatro anos sobre gatunices e assaltos? Depois, teria ainda que discorrer sobre e a desigualdade social geradora de boa parte da violência cosmopolita. O que nos levaria a uma discussão sobre êxodo rural, precarização do trabalho, Engels e crise de 29. E o pior é que nem sei se suas posições políticas se assemelham às minhas. Aliás, esse é outro medo que carrego. No improviso, eu respondi:
– Porque corre o risco de alguém pegar de você, tem pessoas que fazem isso.
O espanto era nítido em sua feição.
– Puxa, papai! E pegam sem pedir “por favor”?
Constrangido e receoso de ter queimado a largada, ter entrado no assunto no momento errado, tento consertar.
– Sim, filho, sem pedir. Mas não acontece sempre, a maioria das pessoas não faz isso. Acontece só de vez em quando, mas mesmo assim temos que tomar cuidado.
– Ah! Só de veiz em quando? Acho que é polisso que nunca aconteceu comigo.
Pedro foi o caminho todo sem reclamar a ausência de seu tablet, provavelmente ensaiando a situação em que poderá chamar de “ladrão” o próximo coleguinha que pegar um brinquedo sem pedir “por favor”.
Depois de um tempo, a gente descobre que, mais do que manter a criança viva, trazer pro mundo da linguagem dá um trabalhão danado. Mais difícil que matar barata voadora.
*Paulo Bueno: Pai do Pedro, de 5 anos. Psicanalista, mestre e doutorando em Psicologia Social pela PUC-SP e docente do Instituto Gerar Psicanálise, Perinatalidade & Parentalidade.