A pedagoga Ana Paula Yazbek conta a angústia de ter o padrasto, com Covid-19, lutando pela vida em uma UTI, e fala sobre as relações familiares
Ana Paula Yazbek* Publicado em 21/07/2021, às 13h05
A Covid-19 chegou perto de mim e está me mostrando que as horas passam devagar, que o som do telefone assusta e os segundos até ouvir qualquer notícia trazem uma angústia infinita. Meu padrasto está na UTI, lutando para viver, e aqui do lado de fora estamos todos torcendo pela sua recuperação.
Há algum tempo vinha pensando em escrever sobre as relações familiares que se transformam, sobre os afetos que se modificam e que os desencontros, paradoxalmente, trazem encontros.
Meus pais se separaram quando eu tinha oito anos, foi uma separação turbulenta, mas apesar disso nunca deixei de ter a presença dos dois em minha vida. Mas hoje não vou falar deles, quero escrever sobre meu padrasto. Eu o detestei por muito tempo, tinha muito ciúmes da minha mãe e achava que ele não era uma pessoa interessante para ela. O relacionamento dos dois começou quando eu tinha dez ou onze anos, sempre que ele se aproximava de mim com algum interesse pelo que eu estava fazendo, ou com alguma manifestação de carinho, eu me afastava, arredia e desconfiada.
Mesmo assim, ele sempre procurou ser afetuoso comigo. Me levava para as festinhas na adolescência e ia me buscar no horário marcado (minha adolescência foi no século passado, quando ainda não tinha celular). Quantas vezes ele ficou esperando na porta até eu sair? Ou chegou mais cedo, porque eu liguei do telefone fixo para o bar que ele e minha mãe estavam porque eu achava que a festa estava chata?
Passamos por muitas coisas juntos. Primeiro ele sofreu um acidente de carro e ficou com uma deficiência na perna. No meu egocentrismo ciumento, cheguei a vibrar por isso ter acontecido. Uns dois anos depois, eu e minha irmã sofremos um acidente de carro muito sério e sua reação foi completamente diferente da minha, cuidou de tudo o que podia, tanto de nós duas, como de minha mãe.
Depois do acidente, baixei a guarda, vi que a vida é um fio frágil e que não valia a pena desperdiçar com ódio.
Um ano depois ele foi morar com a gente e o convívio não foi tranquilo. Tivemos momentos com algum tipo de aproximação e outros de muitas brigas. Na verdade, acho que só eu brigava com ele, esbravejava, ignorava... ele ficava quieto.
Quando me casei comecei a vê-lo com mais carinho, pois meus irmãos também saíram de casa e ele e minha mãe ficaram juntos. Mas era sempre assim, eu dava uns passos a frente para aceitá-lo e depois dava outros tantos para trás quando via algo que não gostava em seu modo de entender o mundo.
Seu amor por minha mãe sempre foi explícito. Ele cuidava dela e não media esforços em cuidar de quem fosse importante para ela. Foi assim quando minha sobrinha nasceu e só intensificou quando meus filhos nasceram. Mas, com os três netos, aconteceu uma coisa diferente, ele construiu uma relação de afeto própria com cada um deles.
Ele se tornou tão avô dos meus filhos como meu pai e meu sogro. Era ele que acompanhava meu filho, Pedro, em todos os seus treinos de futebol e ia a todos os jogos, fossem próximos de casa ou do outro lado da cidade e foi com ele que Pedro encontrou a cumplicidade para sonhar em ser jogador de futebol. Com as meninas, Marina e Julia, sempre as mimou e conforme elas cresceram, teve que lidar com duas netas feministas, algo nada fácil para ele.
Só sei que foi pelos olhos de meus filhos e da minha sobrinha, que as barreiras e preconceitos que tinha em relação a ele foram se diluindo, a raiva foi dando lugar a outros sentimentos muito melhores, carinho, amor, cumplicidade, humor.
Há três meses, ele e minha mãe se mudaram para um apartamento que fica em frente ao nosso. E nosso convívio passou a ser diário, com direito a almoços, jantares e passadas rápidas no final do dia. Ele passou a aumentar o estoque de vinho, depois de um dia que eu disse brincando que agora eu conseguia vinho de graça no vizinho.
Estávamos todos muito felizes de estarmos tão próximos, curtindo tantas coisas juntos. Um dia, eu cheguei do trabalho com uma malha de lã cheia de bolinhas, no dia seguinte meu padrasto tinha comprado um “papa bolinhas” para mim.
Agora, mais uma vez estamos sendo confrontados com o fio frágil da vida. De tudo que eu aprendi com ele, o que mais me marcou é a força do AMOR. Amor dele pela minha mãe, amor dele pelos netos e por todos e todas da sua e da nossa família. Com ele descobri que o amor é capaz de fazer pessoas que pensam diferente se entenderem, que o amor faz a gente querer bem uns aos outros e que o amor perdoa. Espero que ele se recupere e que possamos ter sua presença física, pois sei que sua presença afetiva estará sempre com a gente.
Quero que ele saiba que aprendi a amá-lo muito!
*Ana Paula Yazbek é pedagoga formada pela Faculdade de Educação da USP, com especialização em Educação de Crianças de zero a três anos pelo Instituto Singularidades; iniciou mestrado na FEUSP em 2018 e está pesquisando sobre o papel da educadora de bebês e crianças bem pequenas. É sócia-diretora do espaço ekoa, escola que atende crianças de toda Educação Infantil (dos 0 aos 5 anos e onze meses). Além de acompanhar o trabalho das educadoras, atua em cursos de formação de professores desde 1995 e desde 2002 está voltada exclusivamente aos estudos desta faixa etária.
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