Dados da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, com apoio da Porticus América Latina, mostram que 36% das mães com baixa renda se sentem exaustas
Ana Beatriz Gonçalves* Publicado em 15/06/2021, às 19h12
Estamos todos no mesmo mar, mas não no mesmo barco. Foi isso que os dados inéditos lançados pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, em parceria com a Porticus América Latina, mostraram na pesquisa "Primeiríssima Infância – Interações na Pandemia: Comportamentos de pais e cuidadores de crianças de 0 a 3 anos em tempos de Covid-19".
A pesquisa procurou entender como os pais e cuidadores tiveram suas relações com as crianças afetadas (ou beneficiadas) por conta da pandemia da Covid-19. O estudo em casa, home-office e diversas questões atravessaram o dia a dia de quem antes contava com a rede de apoio do estado: as escolas e creches públicas e particulares.
No entanto, os números escancararam ainda mais a desigualdade de oportunidade entre os cuidadores de diferentes classes sociais. Segundo a Fundação, foram 1.036 entrevistados, sendo eles homens e mulheres das classes A, B, C e D. As três primeiras contaram com a participação de pessoas de todo o Brasil, já da classe D, foram ouvidos moradores de São Paulo, Belo Horizonte, Goiânia, Maceió, Porto Alegre, Recife e Ribeirão Preto.
Diferentemente das famílias mais abastardas, 23% da classe D declarou se sentir triste durante o isolamento, enquanto as outras classes variaram de 7% a 11%. Além disso, existe um abismo entre como esta questão foi encarada para mães e mulheres, e pais e homens.
Cerca de 34% das mães se disseram sobrecarregadas, contra 19% dos pais. Em relação à exaustão, a diferença entre os percentuais também é alarmante: 36% das mães e 15% dos pais. Para Mariana Luz, CEO da Fundação, esse contraste é o resultado de um acúmulo histórico e cultural, de que as responsabilidades e funções domésticas são consideradas exclusivamente papel das mulheres. "Isso foi visto ao longo da sociedade, nos mais diferentes momentos, e ainda hoje é um marcador, uma desigualdade que impacta outros aspectos da vida", comenta.
Já em relação à vida escolar, partindo do ponto de vista de quem recebeu mais ou menos apoio das instituições educacionais, os pais e cuidadores da classe D também representaram uma parcela maior dos que não receberam orientações para a realização das atividades com os pequenos. 21% afirmaram que não tiveram apoio, enquanto 29% relataram que também não receberam informações relacionadas à prevenção e cuidados.
Ao todo, mais de 85% dos respondentes de todas as classes sociais que tinham filhos na creche disseram que mantiveram contato com as unidades durante a pandemia, mesmo com as escolas fechadas.
Com isso, pode ser ter uma ideia como a rede de apoio da escola é importante para a classe mais baixa, já que as classes alta e média podem contar com ajuda familiar ou até mesmo terceirizada, como babás e cuidadores profissionais.
Eduardo Marino, diretor de Conhecimento Aplicado da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, afirma que os sentimentos mais destacados pelos entrevistados da classe D são a sobrecarga e exaustão. Para ele, não há um único motivo para isso, mas o fator econômico é um ponto de atenção. "Essas pessoas se sentem mais tristes e ansiosas, isso porque elas se sentiram inseguras em relação à renda familiar", explica.
Confira a entrevista feita com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal:
Papo de Mãe - Um dos dados que mais nos chamou atenção na pesquisa foi a questão do desemparo da classe D. Mães e pais com menos recursos financeiros se sentem mais sobrecarregados, tristes e exaustos. Isso tem relação direta com o abandono do poder público em relação às escolas? Já que essa classe é o grupo que apresenta maiores porcentagens em relação a nunca terem recebido orientações da escola para realizar atividades com a criança?
Mariana Luz: Não há dúvidas que a classe D está mais exposta às dificuldades impostas pela pandemia – seja pela baixa renda, insegurança alimentar ou ambiente no qual a criança está inserida.
Geralmente os responsáveis pelas crianças desse estrato socioeconômico precisam trabalhar fora e, por conta disso, acabam dependendo das creches ou do cuidado de terceiros. Com as creches fechadas por conta da pandemia, as crianças ficam ainda mais expostas.
No entanto, nós não podemos afirmar, por meio da pesquisa, quais são as relações entre os impactos da pandemia sobre as famílias mais vulneráveis e a oferta, ou não, de assistência do poder público.
A classe D é o grupo que apresenta maiores porcentagens em relação a nunca terem recebido orientações da escola para realizar atividades com a criança, é verdade, mas essa diferença não é tão expressiva se compararmos ao dado universal, de 86% que receberam orientações. Além disso, o dado de vaga em creche se mantém estável para classe D na pandemia, com 29% dessas famílias sem conseguir vaga - número maior que o das outras classes desde antes da pandemia.
Não há um único motivo para explicar os maiores impactos na classe D, mas um fator que está na sua pergunta, que é o financeiro, é uma hipótese para isso. Porque é um fator multiplicador: nós sabemos, por diversos dados, que as famílias atingidas pela desigualdade econômica, são atingidas também pela desigualdade educacional, têm menos acesso à informação qualificada, e acumulam mais funções. Acho que essa multiplicidade de fatores pode explicar melhor.
Papo de Mãe - Sabemos que a pandemia não colocou todas as famílias no mesmo barco, apenas no mesmo mar. A pesquisa mostra com exatidão esse contraste entre as classes sociais. Como isso afeta as crianças desses lares, na opinião de vocês?
Mariana Luz: Os dados que mais saltam aos olhos é que as crianças da classe D são as que mais realizam atividades sozinhas (64%). Destas, 25% assistem desenhos e filmes na TV, celular ou computador e 39% brincam sozinhas.
Elas [crianças da classe D] também brincam menos com os adultos (13%), enquanto nas outras classes esses números variam de 29% a 33%, em comparação às mesmas atividades.
Importante destacar que em todas as classes as crianças brincam mais com adultos. Uma informação aqui conversa com a outra: as crianças brincam mais na pandemia, embora estejam mais sozinhas; quando não brincam sozinhas estão mais expostas às telas, o que, em excesso, é nocivo. A hipótese para tudo isso tem relações com a pandemia.
Papo de Mãe - Por fim, como um balanço dos números, o que falta para as primeiras infâncias – de todas as crianças, independentemente de suas classes econômicas – terem uma qualidade maior?
Mariana Luz: Como se sabe, as interações sociais influenciam e impactam diretamente o comportamento dos seres humanos. E com as crianças pequenas não é diferente: os processos de aprendizagem e o desenvolvimento integral da criança – físico, psicológico, intelectual e social – são amplamente influenciados por essas interações e quando essa interação não ocorre, ou é feita de maneira imprópria, seus impactos podem ser enormes para as crianças.
Então, eu te diria que falta, principalmente, uma ampliação da atenção à primeira infância em todos os aspectos. Porque, quando nos damos conta quão importante é essa fase da vida – para o presente e para o futuro –, aí então passamos a valorizá-la mais e olhar toda a sociedade, governo e as famílias como responsáveis por essas crianças, conforme apregoa nossa Constituição.
Nesse sentido, nosso desejo é que o conteúdo desse estudo seja inspirador para educadores, cuidadores, profissionais das áreas da saúde, educação e assistência social e ativistas da infância. E que ele ajude na construção de caminhos, especialmente com os desafios que a pandemia nos trouxe, para contribuir para o desenvolvimento das crianças em seus primeiros anos e, consequentemente, ao longo de toda a vida.
*Ana Beatriz Gonçalves é repórter do Papo de Mãe.
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