A frase acima é um ditado dos índios guaranis (Região das Missões, RS) e a partir dela a psicóloga Ana Lúcia Bresciane nos faz refletir sobre o tempo
Ana Lucia Bresciane* Publicado em 17/11/2021, às 06h00
Ao escutar esse ditado guarani é inevitável o questionamento sobre como temos gerenciado nossos tempos e sobre o que vem guiando a caminhada humana no mundo contemporâneo.
Preocupados com a produtividade, em dar conta das demandas diversas do trabalho e das responsabilidades assumidas no cotidiano, em absorver o volume de informações que se amplia a cada dia, em cumprir os diferentes papeis assumidos nos diversos âmbitos da vida e em ter sucesso em todos eles, não é raro que as pessoas se sintam sobrecarregadas e esgotadas. Nos últimos tempos, ouve-se sobre o aumento nos casos de burnout, depressão e ansiedade, relacionados à sobrecarga intelectual e à falta de limites entre a vida profissional e pessoal, ainda mais prementes em época de pandemia. Para as crianças e adolescentes parece que o cenário não é muito diferente, o sofrimento psicológico também vem se mostrando crescente nessa parcela da população, preocupando a todos.
Temos consciência de que as escolhas que a humanidade vem fazendo e os valores que vem sendo cultivados nos colocam diante de uma inquietante situação, em que todas as coisas se apresentam em modo de urgência e em constante aceleração. Como nos lembra a preciosa canção de Lenine[1]: “Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma / Até quando o corpo pede um pouco mais de alma / A vida não para” ...
Os afazeres nos absorvem e os espaços de respiro, de contemplação, de desfrute, de encontros e de entrega encolhem. Junto minguam a nossa saúde, nossa sensibilidade, nossa criatividade, nossos desejos mais genuínos. E nesses termos a vida vai ficando, de fato, cada vez mais rara. Não em seu significado mais concreto que define o tempo entre o nascimento e a morte, mas, no sentido figurado, de vida como a motivação que anima a existência humana.
No ditado fica manifesto que, para os guaranis, a linha que tece e dá sentido à vida é a do senso de pertencimento: Nós estamos todos nos levando. Somos parte de um todo maior. O que nos motiva é ter consciência desse lugar que ocupamos, que nos pertence e a quem pertencemos; é o comprometimento e responsabilidade em relação a ele; são as possibilidades de reconhecimento, de crescimento e de realização que o mundo nos oferece.
Mas porque essa segunda afirmação seria um contraponto à primeira de que “Quem vai depressa demais, deixa a alma para trás”?
E aí, vem à lembrança o Ailton[2], que não é guarani, mas é krenak, e diz: “Nós começamos desde cedo a sugerir para as crianças que elas precisam de mérito e que precisam alcançar uma escala para ocupar lugares de vencedores. É claro que ninguém quer formar alunos para serem perdedores, todos querem ser ganhadores. E tem uma metáfora para isso, que é o pódio. O pódio costuma ter um primeiro lugar, o segundo e o terceiro também, mas o primeiro está em destaque e nesse lugar só cabe uma pessoa. E ele é uma mentira, porque não tem nenhum lugar do mundo em que só caiba uma pessoa” (saiba mais clicando aqui).
Ou seja, ensinamos às crianças e jovens a percorrerem seus caminhos sozinhos, tendo como guia uma ideia única de futuro em que, alcançando o sucesso individual, nos destacamos do resto. Sim, nos “destacamos” e deixamos de ser parte, deixamos de pertencer. Deixamos de lado um aspecto essencial de nossa existência humana que é ser no mundo, que é ser com os outros.
Como podemos ajudar as crianças, adolescentes e jovens a lidar de forma diferente com o próprio tempo e com a própria vida enquanto ela é vivida? Será que podemos ensinar algo diferente a eles nesse sentido? Ou vamos continuar ensinando a viver a vida de forma tarefeira, em que os únicos valores verdadeiramente cultivados e recompensados são a produtividade e os resultados individuais?
O desafio que nos colocamos no espaço ekoa é fazer com que o tempo vivido na escola seja um tempo com mais calma e com mais “alma”. Entendemos hoje que uma proposta de educação integral, com um currículo que contemple, além da ampliação, a integração dos saberes; que dialogue com o território; que tenha tempos e espaços alargados, permitindo que as experiências sejam vividas com mais profundidade e em todas as dimensões e, em que sejam possíveis ajustes às necessidades dos estudantes reais à diversidade que os caracteriza, seja um bom começo no sentido de um viver com mais plenitude por parte do estudante e de experiências com mais sentido para todos.
Notas da autora:
[1] cantor, compositor, arranjador, multi-instrumentista, letrista, ator, escritor, produtor musical, engenheiro químico, e ecologista brasileiro, ganhador de seis Grammy Latino, dois prêmios da APCA, e nove Prêmio da Música Brasileira. Autor da canção Paciência, citada neste texto.
[2] Ailton Krenak, é um líder indígena, ambientalista, filósofo, poeta e escritor brasileiro da etnia indígena crenaque.
*Ana Lúcia Bresciane, coordenadora geral do projeto Amplia Ekoa, é mestre em Psicologia da Educação e Psicóloga pela PUC-SP. Foi professora de Educação Infantil, coordenadora pedagógica e hoje é professora no ensino superior. Atua há mais de 20 anos na área da formação docente e assessoria pedagógica, desenvolvendo projetos em redes públicas de diversos municípios brasileiros e em escolas particulares.
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