Menina de 3 anos foi morta em setembro de 2017 na zona leste de São Paulo. O acusado por cometer o homicídio qualificado é o ex-namorado da mãe, Chrytstian Barboza, que está foragido
Ana Beatriz Gonçalves* Publicado em 21/04/2021, às 00h00 - Atualizado às 16h24
Revolta, comoção e incômodo. O caso de Henry Borel, morto aos 4 anos no dia 7 de março em sua própria casa na Barra da Tijuca (RJ), vem causando diversas sensações em toda a sociedade, principalmente com os novos desdobramentos que apontam que Jairo Souza Santos Júnior, conhecido como Dr. Jairinho, e Monique Medeiros, mãe de Henry, foram os principais culpados pelos maus tratos que culminaram na morte da criança.
Apesar de o casal ter alegado no início das investigações que Henry teria caído da cama, a Polícia Civil concluiu que os dois cometeram crime de homicídio duplamente qualificado, torturando o garoto até sua morte, sem qualquer chance de defesa, de acordo com a reportagem publicada pelo UOL (leia na íntegra). O laudo médico feito pelo Instituto Médico Legal (IML) também mostrou que o menino sofreu, ao todo, 23 lesões na noite em que veio a óbito. A crueldade do crime chocou milhares de brasileiros. E famílias que já passaram pelo mesmo drama, sofrem ainda mais.
Para Luciangela dos Santos, de 47 anos, é doloroso ver a história se repetir. Em entrevista ao Papo de Mãe, a professora que vive na zona leste de São Paulo relembra como perdeu a neta Sophia Mazucato Oliveira, de apenas 3 anos, em setembro de 2017. Diferentemente de Henry, o agressor de Sophia não foi preso e sua morte não ganhou a mesma repercussão. “Esse caso do Henry me abalou muito. Eu até evito assistir televisão porque volta o filme todinho da Sophia”, explica.
A menina vivia com a mãe Jéssica Regina Oliveira e o padrasto, Chrytstian Barboza, no bairro Parque São Rafael, na zona leste de SP. O laudo médico constou que Sophia morreu por conta de uma hemorragia interna traumática aguda, ruptura do fígado e ação contundente. Segundo Luciangela, avó paterna da criança, ela também teve quatro costelas quebradas e perfuração no baço. “Não consigo imaginar ela passando por isso. Como e por que maltratar uma criança desse jeito?.”
Luciangela não tinha contato com o namorado de Jéssica. Seu filho, pai de Sophia, estava preso na época em que o crime aconteceu. Ela explica que a relação com a ex-nora era saudável e tinha bastante contato com a neta, mas quando se tratava da vida amorosa de Jéssica, ela não tinha muito conhecimento.
“Quando a Jéssica falou que ia morar com ele [Chrytstian] eu ainda disse: ‘Tem certeza? Você conhece ele tão pouco’, mas ela insistia em dizer que os dois já estavam juntos há um ano, mas pra mim era menos tempo”, conta. A professora de geografia chegou a pedir para a jovem que deixasse Sophia ficar com ela. “Eu não quero a guarda dela, não quero tirar ela de você, mas posso ficar”, falava para Jéssica, que estava em busca de um emprego e por isso ficava ausente em casa.
De acordo com o boletim de ocorrência registrado no 49º Distrito Policial de São Mateus, Sophia foi encontrada desacordada no sofá quando Jéssica voltou para a casa, após deixar a menina com padrasto. “Pediram para comparecer no hospital. Eu pensei mil coisas, que ela tinha se machucado ou algo do tipo. Quando cheguei lá que me contaram”, diz Luciangela. Após a notícia da morte de Sophia, Chrystian saiu do hospital foragido.
O Papo de Mãe procurou Jéssica Regina Oliveira para comentar sobre o caso da filha, mas segundo a irmã, Rayane Regina Oliveira, ela não quis se pronunciar. “Isso nos afeta muito. Ela não tem psicológico para dar entrevista”, disse em troca de mensagens.
As semelhanças entre o caso de Sophia e Henry não param por aí, e também não são coincidências. No Brasil, 32 crianças e adolescentes morrem assassinadas diariamente de acordo com o UNICEF. Vira e mexe, esses casos acabam parando na televisão quando já é tarde demais para salvar a vítima, que geralmente demonstra sinais de alerta antes do pior acontecer, segundo explicou a pedagoga e colunista do Papo de Mãe, Ana Paula Yazbek, em seu recente texto “Caso Henry: As maldades cometidas por “gente de bem” na literatura”.
“Crianças que sofrem abuso costumam apresentar mudança de comportamento, ficam mais introvertidas, demonstram medo, mostram-se mais ansiosas, agitadas, irritadiças e arredias às manifestações de afeto.”A.P.Y (leia na íntegra)
No caso de Sophia, quando se tratava do padrasto, a menina não gostava de comentar. “Parecia gente grande, ela nunca respondia quando eu perguntava sobre ele, mudava de assunto”, conta a avó paterna, que também notou comportamentos estranhos na última vez que cuidou de Sophia, semanas antes de sua morte. “Fiquei com ela do dia 20 até 22 de agosto. Ela demonstrou uma atitude agressiva, e eu estranhei aquilo”, explica Luciangela, que definiu Sophia como uma menina obediente, carinhosa e calma.
Luciangela dos Santos diz que não consegue viver um minuto sem lembrar da neta. “Não entendo, eu falo que só vou sossegar quando a justiça for feita. Até hoje não temos notícia, nem a Jéssica, nem a mãe dele”, explica. Chrytstian Barboza é considerado um foragido da polícia e de acordo com Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), já existe um mandado de prisão. O caso corre na 4ª Vara do Júri, no Fórum Criminal da Barra Funda.
“Por ele não ter pago até hoje o que fez, eu fico imaginando como ele e a família conseguem viver desse jeito, sabendo que ele matou uma criança”, lamenta a avó paterna de Sophia.
O Papo de Mãe procurou a justiça para entender o motivo pelo qual a audiência de júri popular ainda não aconteceu, mesmo após quase 4 anos do crime. Em resposta, o TJSP disse que em fevereiro deste ano o processo para julgamento foi liberado, entretanto, com a pandemia da Covid-19 o Tribunal não pode realizar audiências presenciais, e no caso de júri popular, não é possível realizar de maneira telepresencial.
No entanto, o TJ garantiu que quando os trabalhos presenciais forem retomados, a prioridade de agendamento segue sendo para casos de réus presos, conforme Provimento CSM nº 2.564/20, do TJSP. “O acusado está foragido, embora com mandado de prisão expedido desde a decretação de sua prisão temporária, seguida de decretação da prisão preventiva quando do recebimento da denúncia. A sessão de julgamento será designada assim que possível, obedecendo as preferências legais.”
É difícil não se sensibilizar com o caso de Henry Borel, mas quando se trata de famílias que conhecem a mesma dor de perto, é pior ainda. A avó de Sophia Mazucato conta que se abala muito quando liga a televisão e tenta até desconversar sobre o assunto. Ana Rosa Detilio, psicóloga, explica o processo desta condição. “Pode trazer vivências do passado para o presente. As feridas podem se abrir novamente, seja na empatia ou na memória. Isso acontece em muitas situações, é uma dinâmica humana”, explica.
A proporção midiática da morte cruel de Henry fez com que o caso ficasse em evidência, mas isso geralmente é algo que muda com o passar do tempo, como já visto com as crianças Isabella Nardoni (2018), Bernardo Boldrini (2014) e Rafael Mateus Winques (2014), que também morreram por violência doméstica. Se por um lado é difícil viver o luto na frente das câmeras, esquecê-lo também não ajuda.
“Cada pessoa tende a lidar de uma forma diferente, mas quando falamos de uma criança, um filho, da forma que foi… é traumático. Parece que existe uma regra de como o luto deve acontecer, mas não é assim. A exposição da mídia traz mais desafios ainda”, diz a psicóloga.
Ana Rosa também explica a relação da morte, especialmente em casos de crime e tragédia. Segundo ela, é comum adquirir “recursos emocionais” para conviver com a dor. “A perda mobiliza sentimentos desafiadores em todo mundo. Além do filho ou neto deixar de existir, tem todos esses desafios sociais para enfrentar e continuar com a vida.”
O sentimento de culpa às vezes é presente em casos como o de Henry e Sophia. Normalmente, os parentes acabam trazendo uma carga de pensamento do senso comum é que: “O que eu poderia ter feito para impedir que isso acontecesse?”. Para a especialista, esta luta interna faz parte da “natureza humana”.
Segundo novos dados divulgados pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), nos últimos dez anos o Brasil registrou a morte de pelo menos 103.149 crianças e adolescentes nas mesmas condições de Henry Borel e Sophia Mazucato. Entre 2010 e agosto de 2020, cerca de duas mil vítimas de agressão tinham menos de 4 anos de idade, média de 200 crianças por ano.
O SBP acredita que com a pandemia da Covid-19, e o isolamento social obrigatório, os números devem aumentar. Por isso, a necessidade de alertar sobre a causa. O advogado Ariel de Castro Alves, especialista em direitos da infância e da juventude e membro do Instituto Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, faz uma crítica:
“Temos no Brasil um sistema de proteção de crianças e adolescentes falido, com conselhos tutelares sem estruturas adequadas, com muitos conselheiros sem compromisso e capacitação para a defesa dos direitos humanos de crianças e adolescentes. Varas da infância e juventude sobrecarregadas e com falta de assistentes sociais e psicólogos. Faltam programas e serviços para o atendimento de crianças e adolescentes vítimas de maus tratos e violência na área de saúde e assistência social.” (Ariel de Castro Alves)
Ariel também comenta sobre o caso da menina Sophia, que ainda que o processo esteja correndo sob sigilo de justiça, os casos de violência contra crianças se estendem por anos, já que os crimes são investigados em delegacias comuns, na maioria das vezes, que estão sobrecarregadas. “Quando o caso envolve vítimas com menos condições financeiras, por exemplo, e não tem cobrança permanente da imprensa e de advogados, ficam parados, sem solução por vários anos”, ressalta.
Normalmente os familiares que fazem a defesa da vítima precisam cobrar atuação policial e judicial através de advogados, mas isso requer capital financeiro, tempo e condições emocionais, e na opinião do especialista, famílias mais vulneráveis não possuem tais recursos, e assim, os crimes continuam impunes.
“Essa impunidade estimula a ocorrência de novos casos. Pela sensação de impunidade que gera na comunidade e sociedade, e o próprio acusado foragido pode já estar com outra namorada, numa casa que tenha crianças, e pode acabar fazendo novas vítimas”, comenta.
No caso de Henry Borel, Dr. Jairinho, por ser um figura pública, ganhou bastante repercussão. No entanto, isso não acontece com todas as famílias brasileiras que passam por barbaridades envolvendo abuso e morte de crianças. Ariel de Castro Alves tem uma posição firme em relação ao que pode ser mudado, ou, pelo menos, melhorado.
Para ele, os centros de referência da assistência social precisam dar atenção em casos de famílias mais vulneravéis. “Precisamos ter centros de referência especializados da Criança e do Adolescente, com equipes multidisciplinares capacitadas. E na área policial, precisamos ter delegacias especializadas da Criança e do Adolescente, com assistentes sociais e psicólogos, além dos profissionais da polícia”, afirma.
Luciangela dos Santos, avó de Sophia, cita o fato de que a investigação sobre o assassinato de sua neta está sob sigilo. Segundo Ariel, este recurso é bastante usado por policiais e integrantes do judiciário, o que dificulta ainda mais a cobrança. “O sigilo não deve existir para a principal parte interessada, a família da vítima.”
Atualmente, o Brasil é um dos países mais perigosos do mundo para crianças e adolescentes e os números só reforçam tal fato, ressalta Ariel de Castro Alves.
*Ana Beatriz Gonçalves é jornalista
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