Sou mais uma bicicleta, Luan Galasso

O ator e escritor Vinicius Campos faz uma reflexão sobre como é difícil ser pai e mãe no Brasil, que permite que um youtuber cometa crimes impunemente, dando mau exemplo para a filha, e para todos seus seguidores

Vinicius Campos* Publicado em 23/07/2021, às 10h51

Luan Galasso grava vídeo com Ferrari conversível e filha pequena no banco do carona, sem cadeirinha e com cinto mal colocado - Foto: Reprodução

Acordei e me sentei para escrever minha coluna de sexta. Amanhã vamos pegar a estrada com a criançada em direção a uma semaninha de férias e queria deixar tudo pronto. Depois de um bom tempo sem viagens, de ver alguns planos serem frustrados pelas barreiras impostas pela pandemia, decidimos fazer uma longa viagem de carro. 

Não sou o típico homem que gosta de carros. Pelo contrário, acho um mal necessário para me locomover e sempre que posso priorizo a bicicleta, mas tenho boas lembranças viajando com meus pais, e também com o meu marido e meus filhos. Sempre que podemos escolhemos um destino e vamos devagar, trocando no volante, olhando a paisagem, escutando música para ninguém ficar cansado nem estressado demais. Quando nossos filhos eram pequenos rolavam brincadeiras, jogos, e agora eles revezam na hora de criar a playlist.

Quando fiz terapia de família pela primeira vez, a nossa terapeuta me disse: "quando você precisa falar de um assunto sério com seus filhos, escolha um passeio de carro". Não sei porque, mas é nessas viagens, curtas, dentro da cidade, entre pais e filhos que nascem momentos de muita intimidade, onde nos sentimos livres pra dizer. E não é que ela tinha razão? Apesar de não ser um pai que leva os filhos para todos os lados, aqui em casa incentivamos muito que eles sejam autônomos, em muitas situações tive conversas incríveis com meus filhos enquanto servia de chofer.

Quando dirijo ao lado dos meus filhos tento ser mais paciente que normalmente. Xingar menos ao volante, manter o bom humor, respeitar as regras da cidade, dar a passagem, cuidado aos pedestres, aos ciclistas, tento mostrar a eles o jeito ameno e correto de dirigir, tento colocar uma sementinha de que vale a pena ser amoroso. E outra coisa que a terapeuta dizia e que estou totalmente de acordo é que filho aprende vendo, não escutando.

Sim, você sabe, ser pai, ser mãe, às vezes, quase sempre, é exaustivo.

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Antes de começar a escrever o texto que você está lendo, abri o UOL que é o primeiro site que acesso pelas manhãs; e vi uma matéria sobre um youtuber chamado Luan Galasso. A jornalista dizia que ele tinha subido um vídeo dirigindo uma Ferrari em alta velocidade, com a filha de uns seis ou setes anos, sentada no assento da frente, sem cadeirinha, e com o cinto de segurança mal colocado.

Fiquei curioso. Fui ao Youtube. Clique. 

Luan Galasso é um homem de mais ou menos trinta anos que fala como se tivesse uma batata na boca, ao estilo Luciano Huck. O canal dele tem muitos seguidores. Seus vídeos são sobre carros. Carros caros, chamativos e velozes. Ele fala de motores, de potência, de dólares, muitos dólares, tudo muito "masculino", como se isso fosse ser homem. Não consigo deixar de pensar na frase que diz que o tamanho do carro é diretamente proporcional ao tamanho da insegurança do fulano. Se você ainda não conseguiu imaginar o Luan, eu acho que a Fernanda Young, se ainda estivesse entre nós, certamente ela classificaria o youtuber como Cafona.

Não preciso nem falar que é de mau gosto e detestável que alguém se grave cometendo violações de trânsito, e que num país sério ele deveria ser responsabilizado por cada um dos crimes exibidos. O que nos leva a um segundo ponto: que triste nascer, crescer e educar filhos num país que prende pretos diariamente sem nenhuma prova sequer, mas que um branco metido a riquinho possa fazer o que quiser sem nenhuma consequência.  

Porém talvez ainda mais preocupante seja que a plataforma de vídeos Youtube não tenha restrições contra esse tipo de influencer. Uma plataforma que é assistida por crianças e adolescentes e que deveria proteger o seu conteúdo de criminosos. Porque esse tipo de vídeo somente reforça conceitos retrógrados de gênero que transformam nossos garotos em homens idiotas, sem a capacidade de se desenvolver emocionalmente, inseguros, violentos, acreditando que precisam ser máquinas para serem respeitados, ou pelo menos ter dinheiro para comprar máquinas enormes. Quanto maior o carro menor o sentimento de autoestima que esse garoto tem como ferramenta para enfrentar a adolescência e as etapas difíceis da vida.

Também tem aqueles garotos que não se reconhecem nessas figuras. Meninos que acabam se sentindo mal por não serem considerados tão fortes e poderosos, por não ter acesso a um carro desses grandes e bregas. Garotos que se deprimem e crescem com a autoestima baixa e acabam fazendo besteiras contra suas próprias vidas, ou contra a vida dos outros. As estatísticas dizem que a taxa de suicídio entre garotos é três vezes maior que entre garotas.

Sei que Luan Galasso é mais uma vítima desse machismo estrutural com o qual convivemos. Vítima e se torna vitimário ao levar ao público a mensagem de que o crime que comete fica impune, se torna vitimário ao expor a filha a uma situação de perigo, ao colocar em risco todos os outros carros que cruzam com ele nas rodovias com famílias inocentes que acabam sofrendo uma perda horrível por uma brincadeira de um garoto tonto. E além de tudo, ele ainda ajuda a gerar mais imbecis, e quanto mais imbecis a sociedade gera, mais mortes imbecis temos. Isso não aparece nas estatísticas, mas não tenho a menor dúvida.

Que difícil ser pai no Brasil! Que difícil ser mãe! Estamos sozinhos.

Enquanto a justiça não faz o seu papel, enquanto o Youtube e outras plataformas não se responsabilizam pelos conteúdos disponibilizados para seus usuários, precisamos controlar aquilo que nossos pequenos assistem, e já digo: é impossível. Não tem como lutar principalmente depois que eles têm idade para ter celular.

Então nega, aqui em casa, eu trabalho dobrado. Conversas, exemplos, livros, filmes, vídeos, mensagens, e muitas voltas de carro. Tudo pra tentar fazer um contrapeso contra a desinformação que eles recebem diariamente e quem sabe contribuir para que eles sejam sensíveis, saudáveis e entendam que a beleza de cada ser humano são as potencialidades e as debilidades que trazemos, e que não há nada que um bom abraço não possa resolver. Não há nada que um bom choro não possa desafogar, não há nada mais apaixonante que sair devagar pela vida numa bicicleta.

*Vinicius Campos, escritor e pai de 3 adolescentes – Colunista do Papo de Mãe.
instagram: @viniciuscamposoficial
facebook.com/viniciucamposoficial

Assista ao Papo de Mãe sobre nossos filhos e o trânsito. 

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Papo de Mãe. 

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