O termo em inglês "terrible two" refere-se à fase da birra infantil, que acontece por volta dos 2 anos. Uma crônica de Paulo Bueno
Paulo Bueno* Publicado em 09/10/2021, às 14h04
Sem rodeios. Nada de evasivas. Há quem floreie e substitua o terrible two por eufemismos. Não faço concessões de tal natureza! Terrible two começa cedo. Dois segundos, ou mais, de infinito silêncio até o choro do recém-nascido. Logo em seguida, aos dois primeiros minutos de vida extrauterina, peguei no colo. Por volta da segunda hora de nascimento, lá estava eu dando o banho. E a voz falava: ai de você, ai de você se derrubar a criança, rapaz! Terrible two, terrible years, months, days, hours, minutes [1].
Teve o dia em que ele cismou de sair de casa fantasiado de Homem-Aranha. O único problema é que ele não tinha essa fantasia que tanto queria. Tal qual um figurinista, ofereci todo o acervo, de Marvel a DC Comics, de Pantera Negra à Batman. Seus dois anos de pura teimosia recusaram todas as ofertas. Por fim, após extenso debate, decidi que sairíamos e pronto. O arrependimento não tardou: choro e gritos convenceram-me que não custava nada cerzir um trapo vermelho com outro azul antes de sair de casa. Já não dava mais tempo, havíamos passado a catraca do metrô. Após o falecimento da esperança, que em regra deveria ser a última, pus em prática a única ideia que me ocorreu: peguei um saco de papel pardo, fiz dois furos e lhe entreguei.
- Toma filho, pode colocar sua máscara de Homem-Aranha. – Apreensivo, esperei sua reação.
- Obligado papai. – Ufa!
A sensação de alívio durou apenas até eu atinar que havia muitos pontos de vista. O primeiro, de Pedro, era o de um herói andando pelo metrô e lançando teias por toda a parte. O segundo, era o de um pai e de uma mãe que encontraram a bonança num saco de papel. O terceiro, claramente perceptível no olhar de espanto e reprovação dos passantes, era o de dois adultos segurando as mãos de uma criança com cabeça de papelão.
A cada estação, novas pessoas entravam e nos julgavam. Alguns, mais amistosos, tinham ar de consternação. Como já estávamos chegando, pedi que retirasse a “máscara”. Insisti, negociei, implorei e, finalmente, fracassei na tentativa de dissuasão. Seguimos em frente. Eu fui com a esperança de que parassem de reparar. Passamos a catraca, todos olhavam. Subimos na escada rolante, continuavam olhando, alguns até viravam. Chegamos na Avenida Paulista e..... “uma barraca de máscaras!”.
- Olha filho, uma barraca de máscaras de heróis. Vamos comprar a do Homem-Aranha (àquela altura eu já nem me importava com o preço).
- Mas eu não quelo do Homem-Alanha, eu quelo do Capitão Amélica.
Levamos a do Homem-Aranha. Terrible two.
Aos dois anos teve também a fase da bota Batman. Todo dia tinha que usar a galocha do homem morcego, fosse no inverno, fosse no verão. Certa vez, enquanto degustava seu calçado, Pedro foi surpreendido pela voz da mãe.
- Pedro, tira essa bota da boca! É suja.
Assustada, a criança chorou e buscou abrigo nos braços do pai. Acolhi e esperei acalmar-se para reafirmar que não se deve abocanhar calçados. Pedi para que me explicasse o que havia ocorrido.
- A mamãe colocou a bota na minha boca.
Tive que segurar o riso, porque terrile no two dos outros é refresco. Mas depois refleti e captei que, de fato, quem colocou a palavra “bota” dentro da boca foi a mãe e não o filho. Que haja botas e bocas empíricas constitui fenômeno acessório e irrelevante para o pequeno linguista.
Aos dois anos eu não tinha os conhecimentos que Pedro acumulara sobre linguística, mas tinha boa pontaria. Foi aos dois ou três anos que acertei a testa de um vizinho do prédio com uma pedra. Descobri nessa época que supercílio é um ponto muito propício a jorrar sangue, e assustado subi correndo ao meu apartamento.
A chegada da polícia foi rápida. Do corredor eu observava meus pais explicando aos homens da lei que não deveriam me levar, posto que eu era réu primário (acho que nem isso, réu berçário ou maternal ainda). Suponho que foi essa a justificativa, pois não escutei, eu estava mesmo era preocupado em bolar um plano de fuga. Quando se tem 90 centímetros de altura até mesmo o primeiro andar se torna um abismo.
Tenho pena dos meus pais e, também, dos pais da criança apedrejada. Terrible two, terrible tree, terrible four, terrible five [2]. Ainda tenho fé de que no six (6) Pedro dê uma amenizada.
Mas, por outro lado, sei que nem só de terrible vivem os two (2). Cabe muito adjetivo nesses dois anos. E se não deixo escapar um funny (engraçado) ou amazing (incrível) two (2) é porque trata-se de um texto-denúncia que não pode declinar em pieguice. Falar sobre as agruras da paternidade e maternidade faz parte. Mas sempre cuidando para não botar o terrible (terrível) na boca de nossos filhos. Até mesmo porque esse terrible é mais nosso do que deles.
[1] tradução: terríveis dois, terríveis anos, meses, dias, horas, minutos.
[2] tradução: terríveis 2, terríveis 3, terríveis 4, terríveis 5
*Paulo Bueno: Pai do Pedro, de 5 anos. Psicanalista, mestre e doutor em Psicologia Social pela PUC-SP e docente do Instituto Gerar Psicanálise, Perinatalidade & Parentalidade.
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