Mesmo quando permanecem na relação por décadas, as mulheres reagem à violência doméstica, variando muito as estratégias
Kênia Gondo* Publicado em 03/01/2021, às 00h00 - Atualizado em 04/02/2021, às 08h20
Mesmo quando permanecem na relação por décadas, as mulheres reagem à violência doméstica, variando muito as estratégias. A compreensão dessa perspectiva é importante, porquanto há quem as considerem passivas. Alguns estudiosos assinalam que as mulheres nunca vivem passivamente a violência, segundo eles as mulheres avaliam as opções e os riscos que correm; se permanecem ou não no relacionamento: em ambas as situações ficar ou partir, elas avaliam os riscos para as crianças, a situação financeira, como criar as crianças sozinha; e muitas das vezes a decisão de permanecer na relação faz com que percam a própria vida.
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019, 1.206 mulheres foram vítimas de feminicídio no ano de 2018. Desse total, 88,8% foram vítimas de companheiros ou ex-companheiros. A decisão de abandonar a relação com o abusador está relacionada diretamente a terem ou não o suporte de profissionais, familiar, social ou a influência de sua cultura ou formação religiosa. Por esta razão é importante perguntar às mulheres/mães sobre as estratégias que desenvolvem para protegerem seus filhos a fim de podermos reforçá-las, assim como é extremamente relevante oferecer compreensão dos sentimentos, limites e condições. A mulher adulta é considerada capaz de discernir entre o que lhe convém e o que lhe desagrada ou lhe prejudica. No entanto, do ponto de vista da violência sexual, considerando uma análise superficial e reducionista, a mulher adulta é capaz de consentir, mas se observamos de forma mais reflexiva, contudo, o consentimento lhe escapa, pois ela cede aos desejos do marido, mas não consente na relação sexual, pois, neste caso, o consentimento só pode estar alicerçado no desejo, que ela de fato não sente pelo abusador, muitas delas relatam repudio e medo na relação com o agressor.
Uma crença irreal importante a ser enfrentada, refere-se ao sentimento muito comum vivido por profissionais que atuam com o fenômeno: o de esperar ou exigir que as mulheres se separem, pensando que com essa atitude elas estarão livres da VD. Além de todas as dificuldades para tomar esta decisão, dados ingleses mostram que a separação não termina a violência doméstica e pior, é um momento muito perigoso para as mulheres. Isso exige que os profissionais de diferentes serviços desenvolvam estratégias de intervenção conjuntas que garantam a segurança de mulheres e crianças. Os homens que são muito violentos quando vivem com as mulheres continuam a ser mesmo após a separação. As variadas formas que os homens violentos desenvolvem para manter o controle, incluindo a manipulação de seus filhos após a separação, interpela os diferentes profissionais que trabalham nesta frente de defesa e proteção… será́ que a criança deve continuar a ter contato com o autor da agressão? Muitas crianças sofrem abusos durante este contato.
Mesmo que as crianças digam que querem ver o autor da agressão, quem estaria mais qualificado para decidir se esse contato pode ou não acontecer, quem falaria por elas? Estes encontros com as crianças oferecem uma grande oportunidade para a continuidade da violência após a separação, com as crianças expostas a violência física e verbal. O abuso sexual incestuoso, é uma das formas de violência, mas não a única que o homem perpetra contra a sua família, o que reafirma que a mãe como mulher também não tem tido condições de se proteger, sofrendo muitas vezes diretamente a violência cometida por este homem. Como então esperar, cobrar que ela proteja seus filhos, sem suporte adequado para isso? Pesquisadores ingleses indicam que aumentam as probabilidades de abuso sexual contra crianças quando a mãe é vítima de VD.
Em um relatório de 2006 pesquisadores enfatizaram: “se a mulher é vítima de VD existe uma alta possibilidade das crianças o serem também”. Um estudo realizado em um hospital, revelou que em 45% dos casos de atendimento a crianças vítimas de violência doméstica, ocorria também violência contra a mãe.
Precisamos de maiores informações e discussões sobre o tema para que possamos nos distanciar de intervenções baseadas no senso comum, possibilitando que a sociedade deixe de adotar comportamentos de culpabilização referentes a vítimas e passe a um olhar humano e responsável, fazendo-se necessário ainda oferecer suporte profissional e iniciativas eficazes para as vítimas. Algumas razões históricas apontam para que o enfrentamento a VD contra mulheres ou crianças e adolescentes, não sejam prioridades em nosso país, atualmente, a discussão sobre Direitos Humanos não pode ser considerada uma conquista consolidada; assim, os traços estruturadores de nossa sociedade machista e autoritária ainda não foram superados, desta forma permanece uma certa desconfiança sobre a veracidade e mesmo sobre a gravidade das denúncias de VD.
Algumas crenças sociais enviesadas de preconceito sugerem que as vítimas são frágeis ou possuem personalidade submissas, mas na verdade, uma mulher forte, determinada e com uma personalidade saudável pode ser alvo de um agressor e sofrer problemas psicológicos durante e mediante a convivência, pois as interferências da violência são incontestáveis do ponto de vista, da influência na saúde mental de quem convive com o violador.
Com base nestes pontos levantados neste artigo, é possível destacar importantes desafios que temos a superar: fazer com que a VD seja de fato uma prioridade na agenda política pública brasileira; favorecer o contra condicionamento do senso comum e afirmar a VD enquanto um fenômeno social; estruturar e inovar as políticas públicas; qualificar e ampliar os registros e as estatísticas gerais; aumentar o número de informações e programas e serviços de atenção às vítimas de VD; aumentar o número de profissionais vinculados a estes programas; estruturar e oferecer cursos de qualificação sobre o tema; intensificar e consolidar o trabalho intersetorial e multidisciplinar.
Outras informações importantes:
O que é Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180?O Ligue 180 é um serviço de utilidade pública essencial para o enfrentamento à violência contra a mulher. Em 2019, o Ligue 180 registrou um total de 1,3 milhão de atendimentos telefônicos. Desse número, 6,5% foram denúncias de violações contra a mulher. Com a pandemia do novo coronavírus, a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos ampliou os canais de atendimento do serviço. Nos primeiros quatro meses de 2020, houve um crescimento médio de 14,1% no número de denúncias feitas. Existem ainda, um conjunto de instituições e serviços do Poder Público para atender as mulheres em situação de violência, assim como seus filhos: a Rede de Atendimento à Mulher. Os serviços oferecidos contemplam as áreas da justiça, saúde, segurança pública e assistência social. Alguns destes órgão são: Núcleos Especializados no Acolhimento e Atendimento às Mulheres Vítimas de Violência das Defensorias Públicas, Patrulhas/Rondas Maria da Penha, Casas-Abrigo e as Casas da Mulher Brasileira, as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs), as Delegacias de Defesa da Mulher (DDMs), Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, Promotorias Especializadas, Núcleos de Gênero do Ministério Público, Centros de Referência de Atendimento à Mulher.
*Kênia Braga Gondo é diretora e fundadora da VIVAPLENO – Saúde Mental Clínica e Corporativa.
@vivapleno
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