Roberta Manreza Publicado em 25/06/2016, às 00h00 - Atualizado em 04/08/2016, às 17h17
Por Raquel Guimarães Del Monde*, pediatra e psiquiatra infantil
Vivemos uma era de questionamentos. O acesso à informação, tão fácil e amplo nos dias de hoje, permite uma abertura muito maior a novas ideias e novos conhecimentos. É inevitável o confronto com os valores antigos e os dogmas que permeiam as estruturas das práticas tradicionais. E isso é bom. Às vezes, é como abrir as janelas de um quarto fechado para entrar luz e ar fresco.
A lição de casa é uma prática pedagógica consagrada nas nossas escolas. Faz parte do próprio conceito que temos da educação formal. Questionar a validade dessa prática chega a parecer uma heresia, entretanto, o caminho para melhorar nosso sistema de ensino passa obrigatoriamente pela análise crítica do que é importante ou não para o aprendizado.
Pode parecer chocante, mas a questão é que não há evidência alguma de que tarefas de casa melhorem o desempenho acadêmico dos alunos. Harris Cooper, da Duke University, revisou 180 estudos datados até 2006, não encontrando nenhuma evidência de benefício das tarefas sobre o aprendizado ao longo de todo o Ensino Fundamental. No que se refere ao Ensino Médio, Adam Maltese e colegas encontraram uma relação estatisticamente significativa, porém modesta, entre o número de horas dedicadas ao estudo da matemática e ciência e os resultados obtidos em testes padronizados. Entretanto, essa correlação não se manteve nos resultados obtidos nas notas atribuídas pelos professores das respectivas disciplinas nas provas da escola. Além disso, os próprios autores admitem que outras variáveis possam interferir nos resultados, não sendo possível estabelecer uma relação causal.
Um dos argumentos mais usados para justificar as tarefas é que a realização dos exercícios em casa reforçaria o que a criança aprendeu em sala de aula. Algo como “a prática leva à perfeição”. Alfie Kohn, em seu livro “The Homework Myth”, explora a diferença entre a aquisição de habilidades que podem ser desenvolvidas e aperfeiçoadas com a repetição (como jogar tênis ou tocar um instrumento, por exemplo) e aquelas que dependem da apropriação de um significado, de compreensão. A repetição não conduz ao entendimento. Quando os alunos de uma mesma série levam dezenas de exercícios de matemática para fazer em casa, por exemplo, observa-se que aqueles que não entenderam a matéria, não vão evoluir apenas por copiar mecanicamente o exemplo fornecido em classe e aqueles que já dominaram o conteúdo não precisam disso. Portanto, dar a mesma tarefa para todos os alunos, é pedagogicamente ineficaz. A realização dos exercícios em sala de aula, com discussão de dúvidas e feedback imediato do professor produz resultados muito melhores. Todos sabemos das dificuldades enfrentadas pelos professores, como a necessidade de cumprir metas estabelecidas pelo sistema adotado pela escola (determinado conteúdo em determinado tempo) e ausência de condições para desenvolver um trabalho mais individualizado, mas isso é um outro assunto e não torna as tarefas mais eficazes.
Mas os defensores da lição de casa alegam outros benefícios, além do acadêmico: desenvolver a responsabilidade do aluno e envolver os pais na aprendizagem. A socióloga Heather Shumaker analisa esses pontos. Crianças na Educação Infantil e nos primeiros anos do Fundamental não têm maturidade para lidar sozinhos com suas tarefas: geralmente precisam da ajuda de um adulto para organizar o material e guiá-las na realização das atividades. O grau de dificuldade de grande parte das tarefas, inclusive, torna indispensável a presença do adulto (citando exemplos reais, alguém acha razoável pedir para crianças da Educação Infantil construir um relógio de sol, fazer uma maquete ou elaborar uma história em quadrinhos??). Os pais, por sua vez, tornam-se uma espécie de Patrulha da Tarefa e assumem o papel de cobrar a lição dos filhos, algumas vezes até o Ensino Médio. Porém, temos que encarar o fato de que a maior parte dos pais e mães trabalha fora o dia todo. Ao chegar em casa, se veem às voltas com a obrigação de checar lições e ajudar no estudo, o que muitas vezes toma o tempo que deveria ser destinado à convivência familiar. E quem disse que responsabilidade só é ensinada com exercícios de escola e estudo? Responsabilidade pode ser adquirida dividindo-se as pequenas tarefas domésticas: por a mesa para o jantar, ajudar com a louça, cuidar do animal de estimação, arrumar o quarto. Atividades que pertencem ao cenário da família, onde a troca de afeto e o cuidar um do outro também precisam ser exercitados.
Nem sempre a cobrança da Patrulha da Tarefa ocorre tranquilamente. Batalhas, chantagens e lágrimas não são eventos raros. A revisão conduzida por Harris Cooper, inclusive, encontrou um impacto negativo da lição de casa nas atitudes da criança em relação à escola. Mesmo as crianças que se destacavam por ser bons alunos e obedientes, concordavam que lição de casa é algo para ser feito o mais rapidamente possível, para poder fazer outras atividades. Afinal, já ficam na escola por muitas horas. Querem tempo para relaxar, explorar outros interesses, fazer esportes ou brincar. Aliás, sabemos que sono e alimentação adequados, relações familiares harmoniosas, prática de esportes e brincar são vitais para o equilíbrio e o bem-estar das crianças, com impacto positivo na memória, atenção e comportamento. Não surpreendentemente, o melhor preditor de competência em qualquer área é a motivação da pessoa (o que vai de encontro a seus desejos, interesses e objetivos) e não aquilo que faz por pura obrigação.
Uma atividade praticada em casa com os pais, comprovadamente útil para o desempenho escolar é a leitura. Não a leitura de apostila ou livro da escola, mas aquela feita por prazer, a partir do interesse de cada criança. A tarefa de casa seria bem mais aproveitada se fosse opcional e desenhada a partir desse interesse.
Para quem quer explorar um pouco mais o assunto, os links abaixo trazem referências interessantes.
http://www.alfiekohn.org/students-really-need-practice-homework/
http://www.huffingtonpost.com/alfie-kohn/homework-research_b_2184918.html
http://sydney.edu.au/education_social_work/about/staff/profiles/richard.walker.php
*Dra Raquel Guimarães Del Monde é pediatra e psiquiatra infantil com atuação em desenvolvimento, aprendizagem e autismo, e autora do livro “Na dose certa – o que mais o pediatra tem a dizer”. Participou como especialista convidada do Papo de Mãe nos programas “Síndrome de Asperger” e “Criando meninos e meninas”.
Confira os programas com a participação da Dra Raquel:
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