A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca.
Roberta Manreza Publicado em 23/12/2020, às 00h00 - Atualizado às 10h41
Como tornar essa experiência em um momento feliz.
O pedagogo espanhol Jorge Larrosa Bondia é autor de um texto chamado “Notas sobre a experiência e o saber de experiência”[1], no qual traz boas reflexões sobre o sentido e o significado desta palavra e, para tanto, propõe alguns contrapontos entre experiência e informação, experiência e conhecimento e experiência e aprendizagem.
Discorre sobre o sentido e significado da palavra em diferentes línguas: espanhol, francês, inglês, italiano e alemão e toma como ponto de partida a ideia de que “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece.” (Larrossa, 2001, p.21).
Pontua que informação não é sinônimo de experiência e que pode até ser uma antiexperiência.
Parto desta breve introdução para contar sobre uma vivência que tive com meus filhos às vésperas de um Natal, quando a Marina tinha sete anos e o Pedro quase cinco.
Para a ceia eu fiquei incumbida de preparar o peru. Seguindo a receita de meu pai, comecei os preparos alguns dias antes, primeiro tirando todo o tempero de fábrica, para depois colocar os temperos caseiros e deixá-lo marinando de um dia para o outro.
Na noite em que ia temperar o peru, chamei meus filhos para me ajudar. Depois de picar a cebola e espremer o alho, pedi que acrescentassem a manteiga, o sal e a pimenta do reino, formando uma massa cremosa que seria passada em toda a ave. Os dois se deliciaram com a sensação da manteiga misturada a estes ingredientes, falavam da coceguinha nas mãos com os grãos de sal e pimenta, reclamavam do cheiro da cebola e do alho, mas diziam que era muito legal mexer naquela meleca. No começo, eu apenas estava por perto, mas logo fui contagiada pela brincadeira e melequei minhas mãos também. Em seguida, falei que precisaríamos colocar o tempero no peru e comecei a mostrar como deviam fazer. À princípio, eles ficaram receosos, mas logo se entregaram à tarefa e foram passando as mãos no peito, nas coxas, nas asas e costas do peru. Quando falei que precisavam passar o tempero dentro, novamente ficaram reticentes, mas foi só eu começar que logo colocaram suas mãozinhas lá dentro. Foi um tal de passa, vira, mexe, coloca a mão num orifício para ver sair pelo outro, junto com risadas e gritinhos excitados, que o que poderia ter se encerrado em poucos minutos se eu estivesse sozinha, acabou se eternizando. Assim que terminamos a tarefa, eles ainda me ajudaram a colocar o peru no saco de assar e cobri-lo com vinho branco.
Enquanto eu guardava o peru na geladeira, eles ainda davam risadas e se melecavam um pouco mais, agora na pia, lavando as travessas com meio pote de detergente. Quando finalmente, tudo estava organizado, Pedro falou “Nossa! Isso foi muito legal! Hoje foi o dia mais feliz da minha vida!”.
Eu o abracei, sorri, mas não falei nada. Ele e a Marina foram brincar no quarto, enquanto eu apagava a luz da cozinha, sentindo também a felicidade de um dia mais feliz da minha vida!
Penso que, se ao invés de termos vivido este momento pela experiência, eu tratasse sob o viés da informação, explicando cada etapa do preparo e os fizesse decorar as quantidades e lista de ingredientes, talvez eles “fizessem bonito para a família no Natal”, recitando estes itens e deixando adultos encantados com crianças tão pequenas falando sobre unidades de medidas “1 ½ xícara de vinho branco, ¾ de cebola…” e apresentando um vocabulário elaborado com palavras como “formar uma mistura homogênea, marinar, pré-aquecer o forno…”.
Entretanto, estas informações seriam completamente externas a eles e em poucos dias seriam dissipadas de suas memórias. Por outro lado, a experiência que tivemos foi integradora e teve muito mais sentido e significado para todos nós. E o saber(or) deste peru jamais será esquecido.
Ana Paula Yazbek é pedagoga formada pela Faculdade de Educação da USP, com especialização em Educação de Crianças de zero a três anos pelo Instituto Singularidades; iniciou mestrado na FEUSP em 2018 e está pesquisando sobre o papel da educadora de bebês e crianças bem pequenas.
É sócia-diretora do espaço ekoa, escola que atende crianças de toda Educação Infantil (dos 0 aos 5 anos e onze meses). Além de acompanhar o trabalho das educadoras, atua em cursos de formação de professores desde 1995 e desde 2002 está voltada exclusivamente aos estudos desta faixa etária.
[1]https://www.scielo.br/pdf/rbedu/n19/n19a02.pdf