Papo de Mãe

Ancestralidade e maternidade

Como negras tememos ainda mais pelos nossos filhos. Tememos que desvalorizem a textura de seus cabelos, que riam do formato do seu nariz, que apontem a tonalidade de sua pele e nos assustamos porque sabemos das lágrimas e feridas que irrompem em nossa subjetividade por conta do racismo e suas lástimas.

Roberta Manreza Publicado em 20/11/2020, às 00h00 - Atualizado em 30/11/2020, às 13h27

Imagem Ancestralidade e maternidade
20 de novembro de 2020


“Peito preto e o seu bebê.”

20 de novembro – Dia da Consciência Negra

Mas é preciso ter força

É preciso ter raça

É preciso ter gana sempre

Quem traz no corpo a marca

Maria, Maria

Mistura a dor e a alegria

Milton Nascimento

Esse texto, de 2014, é da Priscila Dias Carlos, mãe de Kadu, Madalena e Bento. Doutoranda em História Social e professora na periferia da zona sul.

E isso é só uma pequena parte de toda essa grande e não tão conhecida história.

Dr. Moises Chencinski*. 

Ancestralidade e maternidade

Como mulher, mãe e negra permear pela amamentação nos religa a universos que transgridem a fronteira entre a fêmea e a nutrição de sua cria. Ser mãe preta em um mundo de tantas dores, causadas pelo racismo, como o nosso, é assustador, deslumbrante e esperançoso.

Não vamos cair na armadilha de discutir sua existência. Sabemos o legado que a escravidão nos deixou, aprendemos, desde pequeninas, o quão difícil é ser mulher, negra e periférica, tendo o exemplo das nossas mães que, como nossas avós, muitas vezes não puderam desfrutar da carícia, do afeto de suprir-nos com os seios arfando em leite.

Como amamentar depois de um dia extenuante de trabalho? Como nos acolher ao seio preto depois do corte da cana, da faxina nas privadas, do pilar da mandioca, do tapa na cara, do pano úmido passado em toda sala, do ferro quente, do estupro, da humilhação? Como nos levar ao seio preto depois de tantas dores?

Como mães tememos pelos nossos filhos, temos medo de que se resfriem, da impotência diante do choro agonizante das cólicas, das noites febris, que sintam frio. Mas como negras tememos ainda mais pelos nossos filhos. Tememos que desvalorizem a textura de seus cabelos, que riam do formato do seu nariz, que apontem a tonalidade de sua pele e nos assustamos porque sabemos das lágrimas e feridas que irrompem em nossa subjetividade por conta do racismo e suas lástimas.

Mas ao mesmo tempo que assusta, deslumbra! Ficamos deslumbradas como ser mãe pode nos revelar rastros de nossa ancestralidade africana. Nos deslumbramos com os saberes do gerar que nossas velhas pretas manuseiam tão bem. Quando dizem que é menina pelo formato da barriga ou mesmo quando sabem que já estamos grávidas, ainda que nem nos demos conta do atraso de nossa menstruação.

São tantos saberes repassados, elaborados e revividos… a faixa ao redor do umbigo, uma cantiga de ninar que acalma ou mesmo palavras sagradas sussurradas em seus pequenos ouvidos, acompanhadas por gestos e plantas que irão proteger ou lhe curar. É deslumbrante quando nossas velhas pretas olham para nossas barrigas e dizem: “- Barriga baixa, já tá nos dias…”. Elas sabem o que dizem!

E quando parimos, nos enchemos de esperança! Esperança de que, talvez, agora podemos ressignificar saberes e sabores maternos negros. Caminhamos no sentido de construir um espaço onde o diálogo entre culturas possa florescer outras possibilidades de convivência no mundo,  compreendemos a amamentação como um ato de amor-político redimensionando-a na esfera da luta antirracista, compreendendo-a e convidando a ser compreendida como um ato de resistência e luta de amor pelo peito preto e o seu bebê.

P.S.: O local na cidade de São Paulo escolhido e mais significativo para a homenagem foi o monumento à Mãe Preta, que fica ao lado da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, um lugar que simboliza a história de resistência do nosso povo.

Por Priscila Dias Carlos, filha de Dona Maria e José Carlos, mãe de Kadu, Madalena e Bento, e historiadora. 

*Dr.  Moises Chencinski , pediatra e homeopata.

Presidente do Departamento Científico de Aleitamento Materno da Sociedade de Pediatria de São Paulo (2016 / 2019 – 2019 / 2021).
Membro do Departamento Científico de Aleitamento Materno da Sociedade Brasileira de Pediatria (2016 / 2019 – 2019 / 2021).
Autor dos livros HOMEOPATIA mais simples que parece, GERAR E NASCER um canto de amor e aconchego, É MAMÍFERO QUE FALA, NÉ? e Dicionário Amamentês-Português
Editor do Blog Pediatra Orienta da Sociedade de Pediatria de São Paulo.
Criador do Movimento Eu Apoio leite Materno.




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