Precisamos ser antirracistas
Ana Paula Yazbek* Publicado em 13/01/2021, às 00h00 - Atualizado às 16h17
Meus primeiros contatos com o racismo estrutural aconteceram na infância. Meus pais, meu irmão e eu somos pessoas brancas, e minha irmã é negra. Num tempo em que era comum empregadas domésticas dormirem em cubículos e, caso tivessem filhos poderiam, com sorte, criá-los no trabalho enquanto eram pequenos e, ao crescerem, poderiam “ajudar nos trabalhos domésticos”, nossos pais fizeram diferente, desde o nascimento da minha irmã a acolheram como filha, sem negarem a maternidade de sua mãe. Foi assim, resumidamente, que nossa família se configurou. Durante a minha infância eu, minha irmã e sua mãe dormíamos num quarto, nosso irmão em outro e nossos pais, enquanto foram casados, em outro.
Só fui ter consciência da complexidade desta configuração, quando, na adolescência, meus novos amigos demonstravam seu estranhamento ao conhecerem meus familiares.
Nos encontros com a família estendida, principalmente nos almoços eventuais com tios avós que nos deparávamos com algo que não sabíamos muito bem como nomear, mas que gerava um mal-estar em todos nós. Logo nos cumprimentos, eu, meu irmão e meus primos, recebíamos afagos carinhosos nos cabelos, seguidos de sorrisos, elogios e beijos molhados que as pessoas mais velhas insistiam em nos dar e quando chegava a vez de tocar em minha irmã, sempre havia uma pausa, o sorriso se retraia, e o afago era encenado a centímetros de seu cabelo. Os elogios eram substituídos com observações como “você de novo por aqui!”, “como cresceu!”.
Segundos após estes constrangidos cumprimentos, saíamos de perto dos adultos e passávamos o dia brincando. Na volta para casa, nossos pais sempre comentavam sobre o desagrado com esta atitude, dávamos risada de alguns trejeitos dos tios avós e o assunto se encerrava por aí.
Anos mais tarde, foi a vez de meus filhos se depararem com o racismo estrutural. Fomos a um restaurante com minha irmã e ao sentarmos o garçom logo indicou a cadeira entre às duas crianças para ela se sentar, pois, supôs que seria a babá. Não valorizamos esta ação e cada um de nós se sentou onde quis. Em seguida, o mesmo rapaz trouxe os cardápios, mas entregou apenas dois, um para mim, outro ao meu marido. No mesmo instante, eu, minha irmã e meu marido pedimos que entregasse o cardápio para ela. Ficamos indignados com a atitude do garçom, mas permanecemos no restaurante.
Retomando estas duas cenas, vejo de forma bem explícita o quanto precisamos mudar nossas atitudes, levando a ações mais concretas a máxima que tem sido colocada em evidência nos dias de hoje: não basta não sermos racistas, temos que ser antirracistas.
Tenho clareza do mal-estar que nossos pais ou outros adultos causariam ao apontar aos tios que estavam sendo racistas. Também tenho clareza dos olhares que receberíamos se apontássemos explicitamente ao garçom e ao gerente do restaurante sobre a atitude racista. Nós nos arrependemos até hoje de não termos saído do restaurante. Penso que se para cada uma destas situações, os adultos envolvidos tivessem explicitado com veemência a negativa ao racismo, já teríamos caminhado muito mais para formarmos uma sociedade antirracista.
Há algum tempo, não deixo mais passar nenhuma atitude que “não foi feita por mal” e tenho ficado cada vez mais atenta às minhas atitudes carregadas de preconceito. Acho importante que o incômodo que antes devia ser deglutido com complacência pelas vítimas do racismo, seja transferido a quem busca naturalizar práticas racistas. Somente assim, seremos bons exemplos às novas gerações
*Ana Paula Yazbek é pedagoga formada pela Faculdade de Educação da USP, com especialização em Educação de Crianças de zero a três anos pelo Instituto Singularidades; iniciou mestrado na FEUSP em 2018 e está pesquisando sobre o papel da educadora de bebês e crianças bem pequenas.