Internado há oito meses na Fundação Casa da Vila Guilherme (zona norte paulistana), Marcos* se surpreendeu com a biblioteca recém-inaugurada na unidade. “Pensei que ia ter só livros ruins. Pensei que iam vir todos rasgados, usados por outras pessoas”, comentou o adolescente de 18 anos enquanto folheava um dos 922 volumes do acervo. Cuidadoso, só tirava um livro após devolver o anterior à estante. Implantado por uma parceria entre o Instituto Brasil Leitor (IBL) e a fundação, o espaço tem, além dos livros, televisão, projetor, aparelho de som e instrumentos musicais. “Não sabia que ia ter jogos [de tabuleiro]”, comentou Marcos sobre os materiais disponíveis aos internos.
O projeto é a primeira experiência do tipo dentro da Fundação Casa. O IBL conseguiu o material e vai acompanhar, durante um ano, o desenvolvimento da iniciativa, adaptando o trabalho às necessidades dos usuários. Até as regras de convivência no espaço são construídas em conjunto com os jovens. “São boas para conservar o espaço, não bagunçar. Não deixar virar uma zona”, destacou o adolescente Ricardo*, 18 anos.
Os equipamentos e materiais diversos dão, segundo o coordenador pedagógico da unidade, Rivaldo dos Santos, a flexibilidade necessária para trabalhar dentro da instituição “Eu tenho dez anos de fundação. E a minha experiência de trabalho com os adolescentes é que a grande maioria tem uma dificuldade muito grande de leitura. Eles vêm com uma defasagem muito grande”, explica sobre a importância dos recursos audiovisuais.
“Esse acervo é diferenciado. A gente pensou muito no jovem que não está alfabetizado. Então, entra livro infantil aqui”, acrescenta a diretora do IBL, Ivani Capelossa. Era justamente um desses volumes que Ricardo manuseava quando a reportagem da Agência Brasil visitou o local. O rapaz conta que cursou até a 8ª série e que ficava mais tempo fora de sala de aula do que dentro. “Eu me sentia meio estranho, não conseguia acompanhar. Eu sentia vergonha porque não sabia fazer a lição e outras pessoas sabiam”, disse, admitindo que lê frases simples com muita dificuldade.
Convivem nas prateleiras, conseguidas como doação de uma empresa especializada, o renomado autor juvenil Marcos Rey, o poeta Carlos Drummond de Andrade, o moçambicano Mia Couto e o fotógrafo Araquém Alcântara. Em meio a toda essa variedade, Marcos diz que prefere os títulos que falam de futebol ou com mensagens de superação.“Tem livro que ajuda bastante. Tem umas histórias felizes em que o cara não tinha nada e começa a estudar, em busca de um sonho, e conquista o sonho”, disse o jovem que cumpre medida por tráfico de drogas.
O jovem pensa em um futuro diferente, mas acredita que essa seria uma possibilidade mais distante se eles cumprissem pena no sistema carcerário. “Lá [no presídio], só vai ter maldade. Não é igual aqui [Fundação Casa], que tem gente querendo te ajudar”, disse ao responder o que achava da proposta de redução da maioridade penal, em tramitação no Congresso Nacional. “O CDP [Centro de Detenção Provisória] deve ser dez vezes pior do que aqui”, concordou Marcos.
Mesmo com a liberdade restrita, Ricardo, que cumpre medida por receptação de carro roubado, acredita que tem oportunidades dentro da fundação. “Há muitos meninos que saem daqui e dão notícia que pararam de roubar, de traficar”, comentou. Marcos pretende ser um desses exemplos. Apesar de ter cursado só até a 5ª série, quer fazer faculdade de engenharia no futuro. “Vou terminar os estudos.”
Para Ricardo, nem sempre os infratores têm noção completa das consequências das suas atitudes antes de passar pela internação. “Há muito menino que não sabe o peso dos seus atos para já ir parar em um CDP”, diz em relação à ideia de que os jovens sejam tratados como adultos aos 16 anos. O adolescente admite que ele mesmo não tinha consciência do que fazia quando estava na rua. “Fazia muito [roubo] sob o efeito de drogas. Só depois fui pensar nas pessoas a quem fiz mal, a quem traumatizei”, contou.
O objetivo do trabalho na biblioteca é, segundo Rivaldo dos Santos, fomentar bons hábitos de leitura entre os adolescentes. “Incentivá-los para que lá fora eles deem continuidade. Aqui vai ser só começo de um trabalho. Mostrar que ele faz parte de uma sociedade onde tem direito a esse espaço da leitura”, destacou o coordenador.
A partir do acompanhamento dos resultados dessa biblioteca pioneira, o IBL pretende coletar dados que ajudem a montar outros projetos semelhantes. Caso consiga o apoio necessário, o instituto pretende disponibilizar acervos nas 147 unidades da Fundação Casa no estado de São Paulo.
A coordenadora do instituto, Ivani Capelossa, explica, no entanto, que a implementação da estrutura física do projeto e o trabalho de curadoria e acompanhamento representam investimento de cerca de R$ 180 mil. “A biblioteca jovem tem uma metodologia de construção. A gente entende que valorar a leitura não é um processo de disponibilizar prateleiras e livros”, destacou, lembrando o diferencial do projeto.
O espaço na unidade da Vila Guilherme foi viabilizado com recursos do próprio IBL em parceria com a Fundação Casa, além de doações de empresas que fornecem materiais para outros projetos do instituto, que implementa bibliotecas infantis e comunitárias em diversas cidades do país.
*Os nomes dos adolescentes são fictícios
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