Roberta Manreza Publicado em 19/10/2016, às 00h00 - Atualizado em 11/11/2016, às 14h40
Por Luis Cosme Pinto*, jornalista, autor do Livro de Crônicas Ponte Aérea
Francisco José, o Chiquinho, Carlos Alberto, o Betinho. Dois irmãos inseparáveis, bons de bola, de pipa, de bicicleta.
Gostavam de brincar aqueles dois. A educação era apelidada de lusitana, ou seja, uma sonora palmada pode valer mais que um milhão de palavras.
Dona Alaíde, portuguesa atarracada, usava as sandálias havaianas mais para “educar” os filhos do que para calçar os próprios pés. Os vizinhos já conheciam a rotina. Às 5 da tarde, dona Alaíde gritava por eles da janela do quarto andar, lá de baixo eles respondiam, aos berros, que só faltava um gol, que era só mais um minutinho. O diálogo, sempre em alto volume, ia longe, até que às seis da tarde, hora da Ave Maria e do pega-pra-capar, dona Alaíde decretava.
-Ou sobem agora, ou eu desço para pegar vocês! Começava uma molecagem que todos adoravam, menos ela. Alaíde descia pelo elevador e eles subiam pela escada.
Agora quem gritava do quarto andar eram os dois.
-Mãe cadê a chave?!
Ela subia.
Eles desciam.
A farsa e a farra iam longe. Chiquinho e Betinho não cansavam. Nunca.
Na hora do almoço chegavam suados da escola, canelas roxas do futebol, não queriam comer, muito menos tomar banho. Como não atender ao chamado da rua, dos amigos?
Alaíde insistia e a dupla cedia, mas daquele jeito. Banho supersônico e logo os dois se sentavam. Eram da portuguesa os bifes mais cheirosos do bairro. Mas Chiquinho e Betinho não tinham tempo pra isso e, aparentemente, engoliam a carne sem mastigar. Sim, por que como explicar tanta rapidez? Assim que botava a comida na mesa, a mãe ia preparar um suco e quando chegava com a bebida os pratos estavam quase vazios, apenas com um resto de feijão, arroz e batatas. Mistério.
A solução foi colocar um espelho na parede da cozinha, assim, mesmo de costas vigiava os dois, enquanto fazia a bebida. Logo no primeiro dia a descoberta chocante: o mesmo garfo que espetava o bife servia para arremessá-lo pela janela. Que pontaria! De costa, eles apenas lançavam e os filés iam girando em queda livre. Com vontade de berrar, chorar e surrar os dois, Alaíde viu os filhos rindo um pro outro, num cumprimento silencioso pela pontaria e agilidade. Lá embaixo, outros meninos e dois vira latas se deliciavam – cada espécie de um jeito – com o file mignon alado.
Alaíde não teve forças para gritar ou bater, só lembrou com tristeza do preço da carne. Quando Antônio, o pai, chegou a surra foi de cinto e o castigo imediato. Um mês dentro de casa! Vieram outras peraltices. O resultado se repetia. Uma travessura, uma surra. Mas Chiquinho e Betinho não sabiam apenas brincar logo aprenderam a suportar os castigos. Choravam baixinho e no fim, com as palavras bem escolhidas, diziam:
-Pai, mãe, vocês têm razão, perdoem a gente, nunca mais vamos fazer isso. A gente vai se comportar, vai comer direito, tomar banho, estudar e arrumar o quarto.
Antônio e Alaíde se entreolhavam à espera da próxima
Dia desses voltei ao bairro de Vila Isabel, na zona norte carioca, para mostrar às minhas filhas o cenário da história tantas vezes contada. O edifício Silvana, 710 da rua Torres Homem, continua lá. Um pouco modificado, com câmeras, grades e interfone. Mesmo assim, conseguimos entrar. Lá de baixo, do playground, vimos a janela de onde os bifes decolavam. Ninguém sabe mais da família no prédio.
-Mudaram, foi só o que disse o porteiro atrás de um vidro espelhado.
Minhas filhas e eu estávamos com fome e vontade de falar mais.
Voamos para uma churrascaria famosa por seus bifes suculentos.
*Luis Cosme foi vizinho de Chiquinho e Betinho por muitos anos. Ele no apartamento 404 e a dupla no 402 do edifício em Vila Isabel. Essa crônica foi publicada originalmente em 2010 e faz parte do livro Ponte Aérea, da editora Novo Século e de autoria do Luis Cosme Pinto.
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