“Somos um casal gay, eu (Toni Reis) e David Harrad. Tenho 51 anos e David, 57. Vivemos juntos há 25 anos. Por volta do ano 2000, começamos a discutir a possibilidade de adotarmos filhos. Idealmente, queríamos uma menina e um menino de aproximadamente 5 ou 6 anos de idade. Em 2005, demos entrada na Vara da Infância e Juventude da nossa cidade para termos habilitação para adoção conjunta, enquanto casal, assim como um casal heterossexual faria. Para evitar a burocracia, pela lei, cada um de nós poderia ter adotado como solteiro. Mas, para nós, havia dois fatores importantes em jogo: a igualdade de direitos garantida pela Constituição Federal e o bem-estar das crianças. Se adotássemos separadamente e um de nós viesse a falecer, o outro não teria automaticamente o direito da guarda do filho adotado pelo falecido, prejudicando assim a segurança da criança criada conjuntamente pelos dois pais.
Foi, então, que começou uma luta que durou dez anos. Nosso caso foi o primeiro em nossa cidade (Curitiba) e ao juiz faltava precedentes para embasar a sua sentença. Quase três anos depois decidiu que poderíamos adotar conjuntamente, mas restringiu a idade e o sexo das crianças. Teriam que ser maiores de 10 anos e somente do sexo feminino. Achamos que a decisão do juiz foi discriminatória e recorremos. Na segunda instância ganhamos por unanimidade o direito de adotar sem qualquer restrição. No entanto, um promotor do Ministério Público recorreu e levou o caso ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), alegando que casais do mesmo sexo não formam uma entidade familiar e não poderiam adotar.
O STF rejeitou o recurso, mas só preferiu sua decisão em 2014. Uma demora judicial cruel, tanto para nós quanto para as crianças à espera de adoção. Mesmo assim, o promotor recorreu novamente da decisão do STJ e a decisão da ministra Carmem Lúcia, do STF, a nosso favor, foi dada em março de 2015, dez anos após o início do processo de adoção.
Em junho de 2011 conhecemos uma juíza de outro estado que era bastante sensibilizada com o nosso caso. Passados alguns meses, recebemos um telefonema dizendo que ela tinha sob seu cuidado um menino de 10 anos que talvez se desse bem conosco. Em setembro desse mesmo ano, passamos dois dias com Alyson. Ele contou que não queria nos conhecer, porque tinha a impressão de que gays eram pessoas nojentas e horrorosas. Mas, com a nossa aproximação, disse que foi “percebendo que somos muito melhores do que pensava”.
Em dezembro de 2011, fomos novamente à cidade de Alyson para receber a guarda provisória, por um período de seis meses. Apesar de, na época, o recurso do promotor contra o nosso direito de adotar ainda estivesse em avaliação pelo STJ, a juíza responsável pelo caso entendeu que, como os recursos não tinham efeitos suspensivos, o que estava valendo era a decisão do Tribunal de Justiça do Paraná de que poderíamos adotar em conjunto sem quaisquer restrições.
Assim, o desafio passou a ser educar Alyson. Foi preciso muita paciência e autocontrole. Ninguém muda de hábitos e comportamentos da noite para o dia. A adaptação é um processo gradativo para todos os envolvidos. Mas impor limites é essencial para a convivência harmoniosa.
Em julho de 2012, após o fim do período de convivência, conquistamos a adoção definitiva de Alyson. Era hora de fazer a documentação do nosso filho. A carteira de identidade que ele tinha quando veio morar conosco foi feito com seu nome anterior. Com a nova certidão de nascimento em mãos, na qual no item “filiação” há dois pais, fomos fazer o novo RG. Agora Alyson tem RG com seu novo nome e o nome de seus dois pais.
Para nós, eu e David, foi um ano de muita aprendizagem, uma vez que estávamos sendo pais pela primeira vez. Crescemos como pessoas e ficamos muito felizes de formar uma família com Alyson. Valeu à pena a adoção tardia. Para completar nosso sonho, só faltava adotar uma filha!
Pouco antes da Páscoa de 2014, recebemos um comunicado do serviço social da mesma Vara de onde veio o Alyson, convidando para conhecer a Jéssica, que acabara de completar 11 anos. Tinha um porém: ela tinha um irmão, Filipe, de 8 anos, e não podia ser separada dele. Fomos os três, eu, David e Alyson, passar cinco dias com Jéssica e Filipe. Deu certo e foi com muito choro que nos separamos das crianças no final da primeira visita. Filipe falou: “Esse é o pior dia da minha vida. Gostei de vocês e agora vão me deixar e ir embora”. Em menos de duas semanas fomos para lá de novo e passamos mais cinco dias juntos no feriado de 1º de maio. Depois desse período, ganhamos a guarda provisória de Jéssica e Filipe e retornamos os cinco para a cidade onde moramos.A adaptação com as duas crianças tem sido muito mais harmoniosa do que com o Alyson, talvez por estarem juntos. Fizemos um contrato básico com eles e uma rotina a ser seguida. Depois de um ano, estamos convivendo muito bem como uma família.
Ser pai é a realização de um sonho. O sentimento é de responsabilidade, proteção, pertencimento, amor e carinho. Ser pai é receber beijos e carinhos todos os dias, no dia do aniversário ganhar bolo e parabéns. É dar educação. É você chegar em casa com alguns problemas e receber um pedido “papai, conta uma história.” Ser pai é padecer no paraíso. É um belo combo de receber amor e ser exigido nos momentos mais impróprios. Ser pai é todo dia maximizar as qualidades e minimizar os defeitos dos filhos. A ponte entre nossas diferenças é o diálogo constante, sistematizado e dentro de uma rotina. É descobrir novos talentos nos filhos, e ser humanizado por eles. Ser pai é falar 3 mil vezes a mesma coisa e o filho só aprender na 3001ª vez, já depois de muito tempo. É ter expectativas muitas vezes sendo atingidas, e muitas vezes não. Saber que eles aprendem muito mais pelo exemplo do que por nossa fala. Não há uma teoria ou um guia para ser pai. Não há receita, você vai ter que ir construindo seu aprendizado na prática cotidiana.
Nós nos mudamos mutuamente. Eles nos mudam e nós os mudamos. É uma troca incessante de aprendizados. O sentimento é de muita emoção. Vieram, respectivamente, de situações de abandono e maus tratos. Estavam bastante atrasados nos estudos, dois deles não sabiam ler e escrever, apesar de terem 8 e 11 anos. É muito gratificante ver o progresso que vêm alcançando e poder ter contribuído para isso.”
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