Eram 3 horas da madrugada quando o telefone tocou na Ilha do Governador, Rio de Janeiro, na casa de Djalma da Silveira Gusmão Júnior, 50 anos, técnico em telecomunicação. Ele atendeu. Do outro lado da linha, um pedido de ajuda: uma bebê de apenas 15 dias havia sido jogada pela janela da casa onde vivia com os pais dependentes de crack, na comunidade Morro do Barbante, a poucos minutos dali. Os dois abandonaram o local. Quem ligou foram os vizinhos.
Djalma e sua esposa na época, Mônica, realizavam trabalho social na região havia mais de dez anos, por intermédio da igreja evangélica que frequentavam. Por isso, mantinham contato com as famílias de lá. Eles correram para socorrer a recém-nascida, Ester.
A criança foi levada até a Unidade de Pronto Atendimento mais próxima, onde recebeu os cuidados necessários. Ao ver o hematoma na cabeça da bebê, a assistente social perguntou o que tinha acontecido. O casal explicou que conhecia os pais da criança, e que eles eram usuários de drogas. Diante da gravidade da situação, o episódio foi comunicado imediatamente à Vara da Infância.
O caso de Ester, infelizmente, não é exceção. A dependência química e a negligência dos pais são as principais causas da perda da guarda no Brasil. Em 2013, 81% dos acolhimentos de crianças em abrigos aconteceram por esses motivos, segundo o levantamento do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Também fazem parte da lista o abandono (78%) e a violência doméstica (57%), entre tantos outros problemas.
Existem hoje 45.237 crianças e adolescentes vivendo nessas instituições pelo Brasil, segundo o Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas. Não são divulgadas informações sobre quantas delas têm pais usuários de drogas, mas os profissionais envolvidos com a assistência são categóricos ao afirmar que elas já são maioria tanto nos abrigos como na fila de adoção.
“As razões para o acolhimento das crianças se misturam. O fato de os pais usarem drogas por si só não leva à perda da guarda. Mas isso costuma se associar à falta de cuidados e abusos. Nesse cenário, o crack é uma das drogas que mais fulmina a capacidade de autocontrole dos responsáveis e os leva a praticar atos de violência”, esclarece Antônio Carlos Ozório Nunes, promotor da Comissão da Infância e Juventude do CNMP.
A pequena Ester ficou bem e, depois de dois dias, pôde deixar o hospital. O casal, então, quis ficar com a bebê. “Fomos encaminhados para a Vara, às 11 horas da manhã, onde aguardamos a sentença judicial, que saiu às 20 horas”, lembra Djalma. A guarda dos pais biológicos foi suspensa e passada provisoriamente a eles – e não só a de Ester, mas também a de seus irmãos Pietro, que tinha 1 ano, e as gêmeas Isabelly e Isadora, 4 anos.
Djalma e Mônica, que acompanhavam a trajetória da família, viram a mãe biológica grávida dos quatro bebês, entre longos sumiços e breves reaparições, mas sempre muito debilitada pela dependência. “A Justiça entendeu que deveríamos tomar conta deles provisoriamente porque tínhamos condições e eles não tinham mais nenhum familiar, mais ninguém”, diz. Assim começou o processo de adoção.
Após quatro meses, Mônica sofreu um infarto fulminante e morreu. Mas Djalma não desistiu de adotar as crianças. “Peguei a documentação e decidi que continuaria com o processo. Levou quase três anos. Consegui a guarda definitiva no final do ano passado”, conta ele.
Nesse meio-tempo, encontrou uma nova parceira, a empresária Fanny, que assumiu por completo a criação dos quatro ao seu lado. As crianças os chamam de pai e mãe, mas sabem de sua história.
Hoje, Ester tem 3 anos, Pietro, 4, e as gêmeas Isabelly e Isadora, 8. Todos estão crescendo saudáveis, sem sequelas do consumo de crack da mãe biológica, e têm um baita pique. “Eu levanto todo dia às 6 horas da manhã. É uma loucura a nossa rotina. Levo as crianças à escola e, quando chego em casa à noite, ajudo nos estudos. Só paro depois das 21 horas, quando vão dormir”, conta o incansável Djalma, que já era pai de quatro filhos biológicos, de 17, 20, 25 e 27 anos.
“Não imaginava ser pai de quatro crianças novamente. São coisas que acontecem e não podemos prever. Elas me dão muita felicidade”, afirma.
As cracolândias, locais a céu aberto onde ocorrem a compra e o consumo do crack, não são mais exclusividade das grandes metrópoles. O uso da droga se alastrou, percorrendo todo o território nacional como um pavio aceso.
De norte a sul do país, até cidades muito pequenas como Cantá, em Roraima, com cerca de 15 mil habitantes, e Miraguaí, no Rio Grande do Sul, com menos de 5 mil, declaram ter alto nível de problemas relacionados ao crack, conforme aponta a Confederação Nacional de Municípios.
O mais comum é ver homens fumando a droga, mas as mulheres também estão lá. Estima-se que elas representem 21% dos 370 mil usuários de crack no Brasil. Os números são da Pesquisa Nacional sobre o Uso de Crack feita em 2013 pelo Ministério da Saúde e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
A maioria delas vive nas ruas e paga até R$10 por uma pedra. Para conseguir dinheiro, fazem bicos esporádicos, pedem na rua, pegam emprestado com a família, furtam, roubam e se prostituem. É nesse cenário triste e degradante criado pelo vício que muitos bebês são gerados.
Apesar de o Ministério distribuir gratuitamente camisinhas e outros métodos contraceptivos nas Unidades Básicas de Saúde, as gestações acontecem. “As mulheres que usam crack são as mais vulneráveis entre os vulneráveis. Sabemos que 50% delas engravidam ao menos uma vez durante o consumo regular da droga”, informa Vitore Maximiano, secretário nacional de políticas sobre drogas do Ministério da Justiça.
Foi o que aconteceu com Vânia Silva Castro, 28 anos. Ela começou a usar cocaína aos 16 e, aos 24, conheceu o crack. “Cheguei a me casar no Paraná, mas meu marido não aguentava mais o meu vício. Então, arrumei minhas coisas e viajei para São Paulo. Parei primeiro na Praça da Sé e fiquei por lá usando crack. Eram pelo menos dez pedras por dia. Aí minha barriga começou a crescer. Eu já tinha saído grávida do Paraná e não sabia”, conta. Ela diz que não comia quase nada na época e pegava o que sobrava no chão, após as feiras de rua.
Para se livrar da dependência e evitar que o bebê fosse tirado de seus cuidados, Vânia, ainda grávida, aceitou se internar no Hospital Lacan, em São Bernardo do Campo (SP), que é uma instituição privada conveniada à Secretaria do Estado de Saúde.
Lá, recebeu tratamento por quatro meses. Depois de se recuperar, deu à luz Davi, hoje com 11 meses. “Acho que sem Deus e sem o apoio das pessoas, eu não teria conseguido. Penso em viver no futuro com meus outros dois filhos, o Cristiano, 10 anos, e o Kevin, 7, que moram com parentes. Estou muito feliz agora. A mudança na minha vida foi muito grande”, comemora ela, que hoje vive com uma tia em São Vicente (SP).
Infelizmente, nem todas as mulheres conseguem se recuperar como Vânia. Muitas são vencidas pela droga e voltam às ruas, de modo que seus filhos têm de ser encaminhados aos abrigos.
Em um primeiro momento, a Justiça tenta a reinserção das crianças com outros membros da família ou com os próprios pais, caso eles aceitem se tratar. Só quando não há mais perspectivas de reinserção é que elas entram na fila de adoção.
Apesar do vício, a maioria das mães não abandona os filhos recém-nascidos. “Das 65 mulheres dependentes que deram à luz em nosso hospital em 2013, apenas duas foram embora e deixaram os bebês. Em 2014, não houve nenhum caso assim”, revela Tania Lucena, assistente social do Hospital Maternidade Leonor Mendes de Barros, na zona leste de São Paulo, para onde são encaminhadas muitas mulheres dependentes em trabalho de parto.
Ela afirma que sua experiência na maternidade desmistifica a ideia de que as usuárias de crack abandonam os bebês após o nascimento. “Pelo contrário. As mães, mesmo muito debilitadas, não desejam ficar sem os filhos e reagem com agressividade a essa possibilidade”, diz.
Por outro lado, caso essas mulheres continuem consumindo drogas de forma que prejudique a criação dos filhos, a Justiça pode encaminhá-los a abrigos infantis. No abrigo Ana Carolina, por exemplo, localizado em Ramos, zona norte do Rio de Janeiro, os números são sazonais, mas a instituição já chegou a ter 90% de suas crianças provenientes de mães usuárias de crack.
Só em 2014, o abrigo acolheu 61 bebês e crianças de até 4 anos nessa condição. Desses, 25 foram reinseridos na família de origem e outros 25 conseguiram pais adotivos. Em Belo Horizonte (MG), onde cerca de 600 crianças vivem em abrigos, 158 bebês foram tirados da guarda de suas mães em 2014 por conta do uso de crack.
“O crack causa danos em todos os órgãos do usuário. No cérebro, pode ocorrer até atrofia”, explica Hewdy Lobo, psiquiatra e diretor clínico do Hospital Lacan (SP). Para o bebê, os riscos incluem baixo crescimento fetal e malformações de órgãos. Segundo o médico, não existe comprovação de que há danos permanentes às crianças.
Quando pequenas, elas costumam precisar de atenção psicológica imediata e requerem cuidado do pediatra com possíveis doenças infecciosas. Lobo também explica que a dependência química é causada, em parte, pela herança genética. Por isso, filhos biológicos de dependentes precisam de mais atenção preventiva contra as drogas.
Mesmo sabendo de tudo isso, a bióloga Valeria Postiglione, 35 anos, e seu marido, Bruno, abriram os braços e o coração e deram um exemplo de amor ao adotar uma criança que teve pais biológicos usuários de drogas. “Quando preenchemos o perfil da criança que desejávamos, não vimos esse fato como umempecilho. A nossa filha veio da região central de São Paulo. Sabemos que a mãe foi usuária de crack e outras drogas, não fez pré-natal e abandonou o bebê no hospital onde deu à luz”, conta Valeria, que tem diabetes e optou por não engravidar.
Durante o cadastro na fila de adoção, os pretendentes preenchem um formulário indicando o perfil de criança que buscam: cor, idade, sexo, irmãos etc. Também é preciso informar se aceitam que a criança seja portadora de alguma doença ou tenha pais biológicos usuários de drogas.
Ao se abrir para as diversas possibilidades de origem, as chances de conseguir um filho aumentam muito. “Cada vez mais, as pessoas estão sensibilizadas para essa questão. Assim, o processo de adoção ocorre mais rápido do que quando se idealiza determinado bebê que não existe. É preciso lembrar que a vida é incerta, até mesmo o filho biológico é incerto – nunca se sabe como ele nascerá”, diz a juíza Dora Martins, da Vara da Infância e Juventude Central de São Paulo.
Ela enfatiza que é preciso aceitar o passado da criança e não adianta querer apagá-lo. “Até mesmo o bebê deve ter sua história preservada, ele tem direito a isso. Não dá para passar um pano e começar do zero.”
Dos mais de 45 mil meninos e meninas em abrigos no Brasil, apenas 5.620 são considerados aptos a serem adotados, de acordo com o Cadastro Nacional de Adoção. “Muitas das crianças acolhidas retornam às suas famílias biológicas quando possível”, elucida o promotorAntônio Nunes.
Na lista dos que desejam adotar, há 32.854 pretendentes – um número tido como alto. Mas a quantidade de crianças na fila demora a diminuir porque grande parte quer um perfil específico.“Muitos buscam um bebê de até 6 meses, que seja menina e branca. A pessoa que quer adotar tem de entender que não pode trabalhar com um ideal que não existe”, diz a juíza Dora Martins.
Pouco mais de um ano após o início do processo de adoção, Valeria e Bruno receberam a tão esperada indicação de quem poderiam adotar. “Nós acreditamos que o meio e o amor que você dá para a criança transformam o futuro dela. A Clarice chegou com 7 meses e se adaptou superbem”, conta a mãe, feliz. “Às vezes, penso que ela não nasceu de mim,mas com certeza nasceu para mim. É um amor que não dá para explicar. Queremos adotar mais dois.”
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