Ariela Doctors conta que, na contramão dos ensinamentos da nossa história e cultura, vemos cada vez mais crianças com alergias alimentares sendo excluídas
Ariela Doctors* Publicado em 10/03/2021, às 00h00 - Atualizado às 18h11
“Cuidado significa então desvelo, solicitude, diligência, zelo, atenção, bom trato. Estamos diante de uma atitude fundamental, de um modo de ser mediante o qual a pessoa sai de si e centra-se no outro com desvelo e solicitude”.*
O filhote humano nasce sem a capacidade de se alimentar sozinho. Consequentemente, as fêmeas precisam alimentá-los para preservação da espécie. Hoje em dia, pensar nisso não parece muito complicado, pois, na maioria dos casos, podemos contar com feiras, mercados e sacolões, para nos abastecer. Mas, imagine tal façanha nos primeiros tempos da humanidade na Terra. Uma fêmea, para cuidar de seu filhote e alimentá-lo, precisava contar com uma rede de apoio. Era necessária a formação de um grupo. Uma comunidade onde uns pudessem caçar e coletar alimentos para que as fêmeas pudessem cuidar e defender os seus filhotes. Uma comunhão de indivíduos que ocorria em torno da perpetuação da espécie, por meio do alimento, que revela desde os tempos mais remotos da humanidade, a preocupação com o bem estar do outro.
Nascia a sociabilidade e a comensalidade.
Comer, historicamente, é um ato de comunhão, de participação, de inclusão. Algumas passagens bíblicas, como o milagre da multiplicação do pão e dos peixes, realizado no Monte das Oliveiras, por Jesus Cristo e o banquete da rainha Ester, na Pérsia, onde ela intercede pedindo ao seu então marido, Rei Assuero, em favor da salvação do povo Judeu, são exemplos disso.
“Jesus traz à tona a comensalidade como prática unificadora e fundante de um ritual de comunhão radical, onde seu próprio corpo, simbolicamente, é oferecido aos convivas, conforme o ritual cristão”.**Na igreja católica, até hoje, durante as missas, a comunhão com o divino ocorre num ato de alimentar-se do corpo de cristo e beber seu sangue.
A ética da comunhão é explicitamente abraçada pelo cuidado, busca unir pessoas e recriar, por meio de linguagem amorosa, o sentimento de bem querer e pertencimento, a garantia do direito de todos de habitar a mesa comum da humanidade.
Trazendo esse conhecimento histórico cultural para os dias atuais, podemos observar a mobilização de diversas organizações, movimentos sociais, órgãos públicos e privados que lutam para garantir esse direito básico.
Na Campanha “Alimentação – Direito de Todos”, em 2010 a alimentação foi incluída entre os direitos sociais previstos no artigo 6o da Constituição Federal – DHAA, o Direito Humano à Alimentação Adequada.
Infelizmente, apesar dessa conquista, a inclusão do direito não é suficiente para garantir a todos uma alimentação adequada e saudável.
A alimentação escolar, um dos componentes do Sistema Nacional de Alimentação e Nutrição (SISAN), também foi criado para assegurar o direito humano à alimentação adequada. Tal direito tem como norteadora a Lei n. 11.947/09, que visa “garantir segurança alimentar e nutricional dos alunos, com acesso de forma igualitária, respeitando as diferenças biológicas entre idades e condições de saúde dos alunos que necessitem de atenção específica e aqueles que se encontram em vulnerabilidade social”.
Com tudo isso, podemos pensar que alergias alimentares nunca poderiam ser motivos de exclusão. Só que não.
Atualmente, vemos cada vez mais crianças celíacas, intolerantes a lactose, entre outras alergias. O porquê disso é um tema extenso que poderá ser tema de outro artigo. O que quero atentar aqui é que a ALERGIA ALIMENTAR É ALGO SÉRIO. Os familiares temem pela contaminação cruzada, adoecimento, sequelas e exclusão de seus filhos e filhas.
Podemos observar uma série de relatos de pais, mães e familiares sobre este tema, que ao invés de ser tratado de forma cuidadosa e inclusiva, ao contrário, dependendo da escola, muitas crianças são segregadas por colegas e até mesmo por professores e gestores que percebem tais restrições alimentares não como um desafio a ser enfrentado de forma conjunta, mas como um problema do indivíduo e de suas famílias.
Na contramão dos ensinamentos da nossa história e cultura, vemos cada vez mais crianças hostilizadas num ambiente que deveria ser de acolhimento e inclusão. Apesar das restrições, o alimento e o momento de comer, deve sempre ser lembrado por uma criança de forma afetiva. De outra forma, tais lembranças podem ser motivo de tristeza e dor, causando ao indivíduo transtornos alimentares importantes e para toda a vida.
Se seu filho ou sua filha tem alguma restrição ou alergia, saiba que isso pode mudar com seu crescimento. A melhor forma de lidar com tais questões é procurar substituir os alimentos que causam alergia de forma tranquila. Cozinhar com eles, falar sobre o alimento, sua procedência e as mil e uma possibilidades de preparo é uma maneira de se aproximarem do tema de forma amistosa, com carinho e cuidado!
Aqui vai a receita de um delicioso bolo de chocolate leve, fofinho e sem glúten, pensando naqueles que têm restrições!
Bom apetite!
Você pode acessar outras receitas no site Comida e Cultura.
Conheça mais do nosso trabalho no @projetocomidaecultura
*Ariela Doctors é chef, comunicadora e mãe
*Boff L. Saber cuidar. Petropólis, RJ: Vozes; 2013.
**Betto F. Politícas do corpo. Motrivivência: Revista de Educação Física, Esporte e Lazer 2000; 15.