Papo de Mãe

Luta contra preconceitos aproveita irreverência do carnaval

Roberta Manreza Publicado em 15/02/2015, às 00h00 - Atualizado às 23h02

Imagem Luta contra preconceitos aproveita irreverência do carnaval
15 de fevereiro de 2015


Vinícius Lisboa – Repórter da Agência Brasil  Edição: Fernando Fraga

A constante mobilização de minorias e grupos de direitos humanos ganhou corpo no carnaval, e blocos grandes e pequenos aproveitam a irreverência da festa para reivindicar espaço e questionar preconceitos ainda presentes na sociedade. Acusados de politicamente chatos ou celebrados como movimentos sociais, os blocos contrários ao racismo, ao machismo e à homofobia estão na rua e devem reunir multidões, como o Bloco da Preta, que juntou mais de 300 mil pessoas no Rio de Janeiro e, entre uma música e outra, tinha na voz da cantora Preta Gil o protesto contra a discriminação de orientações sexuais.

Em resposta a uma fotomontagem na internet que dizia Eu não mereço mulher rodada, duas amigas se inspiraram em uma série de reações debochadas que tomaram conta da internet e fundaram o Bloco das Mulheres Rodadas, que sai na quarta-feira de cinzas satirizando a opressão contra a liberdade sexual das mulheres. Com 10 mil presenças confirmadas no Facebook, o bloco organizado por Renata Rodrigues e Debora Thome vai ridicularizar o moralismo. “O caminho que a gente escolheu no carnaval é o de fazer piada. O quão ridículo é, hoje em dia, você defender um conceito ou uma ideia como essa? Nós duas e muitas meninas já vivemos isso na pele. É um preconceito idiota, ridículo. A gente achou que expor essa ideia ao ridículo também é um ato político”, diz Renata, que não se considera uma militante, mas alguém que acompanha e se preocupa com o assunto.

A fundadora do bloco conta que recebeu críticas pela iniciativa. “A gente enfrentou tanto pessoas que falam ‘o que seu filho e sua família vão pensar?’, como também uma militância que questionou que a gente estava fazendo piada com coisa séria”, diz. Ela espera entre mil e 2 mil pessoas no desfile e pede criatividade e saias rodadas. “Uma menina chegou para mim e disse que está preparando uma fantasia de roleta. O carnaval abre essa possibilidade de brincar e de aumentar esse ridículo que, em outra época do ano, a gente não conseguiria. A gente sabe que o assunto é sério e só porque nos importamos com isso criamos o bloco”.

Na zona norte, o Bloco Gargalhada, formado por pessoas com necessidades especiais, nasceu para dar um espaço seguro para essas pessoas brincarem o carnaval. “Como o Gargalhada está fazendo 10 anos, existe a consciência das pessoas que frequentam de ajudar realmente. É comum ver, dentro e fora do clube, uma pessoa ajudando um cego a ir ao banheiro, dançando com um folião com síndrome de Down. É um bloco de todo mundo”, explica a organizadora Yolanda Branconnot.

A concentração do bloco ocorre na Associação Atlética Vila Isabel e, saindo de lá, ele percorre o Boulevard 28 de Setembro, uma das principais vias do bairro, plana e em linha reta. Além da solidariedade dos frequentadores, o bloco inclui intérpretes da Língua Brasileira de Sinais (Libras), para deficientes auditivos acompanharem o tema do samba, que, neste ano, defende a permanência do clube que abriga o bloco. “É uma oportunidade de a gente se comunicar de uma maneira alegre, objetiva e irreverente, mas podendo dar eco às mais diversas questões. É brincar falando sério e colocar isso na boca de muita gente.”

Para o historiador da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Leonardo Pereira, o carnaval sempre foi espaço de crítica social. O que mudou foram os valores e o meio em que suas músicas são concebidas. “Como espaço de encontro e de diferentes grupos, o carnaval se prestou, muitas vezes, ao tipo de música que ironizava o outro. Como toda produção cultural, as marchinhas de carnaval têm sentido no meio em que foram produzidas. O que era aceito na letra de uma marchinha de carnaval mudou”, diz o pesquisador, que destaca que músicas como O Teu Cabelo Não Nega se popularizaram porque grande parte da sociedade as julgou adequadas na época em que foram lançadas.

“Elas fazem parte da experiência e da cultura brasileira, mas expressam o racismo e a exclusão dessa sociedade. Não se trata de excluir a música, porque ela não é a causadora do racismo”, defende ele, afirmando que o modo como o país lida com as questões raciais mudou. “Não estou querendo dizer que isso representa a superação do preconceito. A questão ainda está em processo, mas pelo menos está colocada”.

Compositor das marchinhas famosas – e hoje questionadas – Cabeleira do Zezé e Maria Sapatão, João Roberto Kelly se defende e afirma que nunca teve a intenção de ofender qualquer grupo com suas letras. “O Brasil tem muita coisa séria para pensar e muita coisa importante para tratar. O preconceito é abominável em todos os aspectos. Mas isso é uma grande brincadeira. Não é com o intuito de ofender”, explica.

Com um currículo de músicas que entraram para a história do carnaval, Kelly discorda de quem acha que o chamado “politicamente correto” atrapalha a composição de marchinhas e a irreverência do carnaval. “O processo criativo é natural de cada um, e a pessoa tem que escolher temas interessantes. E tem que ser feito com inteligência, com brincadeira. É uma válvula de escape dos problemas de cada um”, afirma o compositor, que dá dicas sobre como ter poder de síntese e satirizar para quem quer criar uma marchinha. Com bom humor, ele também sugere acompanhar os temas do noticiário. “Os jornais já são uma grande marchinha de carnaval”.

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